O Significado de Democracia

Boa Vontade Mundial - Fevereiro de 2008

Liberdade Espiritual
Uma Nova Visão de Cidadania
Democracia e Transmutação - da consciência individual à grupal
Democracia e Representantes do Povo

Alice Bailey propõe que a universalidade da democracia é a resposta da humanidade – embora ainda inexata – à energia pura do Amor, e sugere que uma democracia verdadeira será possível “pelo uso correto dos sistemas de educação pelo constante treinamento do povo para reconhecer os valores mais sutis, o ponto de vista mais correto, o idealismo mais elevado, o espírito de síntese e de unidade cooperadora”. Para avançar para esta verdadeira democracia, ela indica que o que é necessário é um maior número de pessoas verdadeiramente despertas; e quando isto acontecer, “veremos a purificação do campo político ocorrer, e instituída a depuração dos nossos processos de representação, bem como uma mais severa prestação de contas exigida pelo povo que escolhe seus governantes. Deve existir, eventualmente, uma conexão mais estreita entre o sistema educacional, o sistema legal e o governo; todos direcionados para um esforço de realizar os melhores ideais dos pensadores da época.” (A Exteriorização da Hierarquia, pág. 52-3) Quando isto acontecer. “... os povos não tolerarão o autoritarismo de nenhuma igreja, ou o totalitarismo de nenhum sistema político ou de nenhum governo; não aceitarão ou permitirão o governo ou regras de nenhum grupo de pessoas que se encarrega a dizer-lhes em que devem acreditar para serem salvos, ou que governo devem aceitar.” (Idem pág. 618)

Embora a democracia se manifesta de muitas formas, há certas características essenciais que a maioria compartilha. Estas são: que todos que são competentes para decidir como serem governados devem ter um regular poder de decisão sobre quais líderes são escolhidos – vindo daí um regular ciclo eleitoral; que o voto de cada cidadão, desde o mais rico ao mais pobre, deve ter valor igual neste processo – daí a necessidade do voto secreto (1); e que cada cidadão é completamente livre para decidir como seu voto deve ser depositado, sem intimidação ou suborno – daí a necessidade de uma força policial e exército apolíticos. Ademais, todo cidadão deve ter acesso à informação sobre aqueles que aspiram a liderá-lo – assim os meios de comunicação devem ser livres para dar total e imparcial cobertura a todos os envolvidos num processo eleitoral.

De fato, quando a maioria das pessoas pensa em democracia, ao que realmente se referem é democracia liberal – isto é, a combinação de democracia como um meio de escolher um governo, com liberalismo constitucional, ou seja, a proteção da autonomia e dignidade individual contra qualquer forma de coerção, seja do estado, da igreja ou da sociedade. Cada uma tende a reforçar a outra, pois um estado pode ser somente verdadeiramente democrático se seus cidadãos são livres e podem assim escolher livremente seus governantes; e essas liberdades devem ser mais bem asseguradas pelos governantes escolhidos desta maneira. Entretanto, o comentarista Fareed Zakaria nota que eleições democráticas podem levar ao poder governantes que suprimem as liberdades (2). A isto ele chama de “democracia iliberal” (3). Também observa que democracia não é uma condição para a existência de elevado nível de liberalismo constitucional. Assim, por exemplo, um estado poderia ter um judiciário totalmente independente (uma das principais instituições que garantem o liberalismo constitucional), mas o eleitorado poderia não desempenhar nenhum papel na sua escolha.

Na realidade, este é um exemplo de insinuação genérica que Zakaria faz, ou seja, que muita democracia pode não ser boa coisa. É improvável, num estado-nação complexo, que o eleitorado tenha conhecimento suficiente para decidir adequadamente cada cargo de governo, especialmente aqueles em áreas especializadas, podendo assim delegar este processo de seleção aos líderes eleitos. De qualquer forma, é impossível votar diretamente em cada grupo que influencia a conduta de ações políticas num estado democrático, na medida em que os governantes devem também prestar atenção na escolha de líderes nas atividades econômicas, na religião, e, cada vez mais, nas “organizações não governamentais” que têm sido constituídas por grupos de cidadãos interessados em assuntos específicos. O grau de influência que esses “grupos de interesse especial” têm sobre a conduta do governo representa um desafio. Quando esse desafio é excessivo pode ser argumentado que a democracia fica enfraquecida ao ponto para a oligarquia (o governo das elites); quando escasso, a cultura do desafio justificado aos excessos governamentais, que caracteriza a maioria das democracias, fica anulada.

Nos tópicos a seguir, ponderamos sobre alguns dos assuntos que surgem quando se considera a democracia liberal: quais são as qualificações do político democrata, e como surgiu essa função? Os cidadãos das democracias têm responsabilidades especiais para protegê-las e fortalecê-las? Quais são essas responsabilidades? Qual é o significado mais profundo de “liberdade”?

Talvez haja, no Ocidente, a tendência a considerar a democracia como uma panaceia para as dificuldades que qualquer sociedade enfrenta quando se esforça para se modernizar. Não obstante, se a democracia representa certa fase da consciência nacional, que somente é alcançada depois de outras fases terem sido exploradas, poderia ser então contraproducente a tentativa de imposição de democracia numa nação que não esteja psicologicamente preparada para ela.

Há um número de supostas democracias em todo o mundo que são claramente anormais em diversos graus. Isto não sugere que indivíduos, grupos e nações não devem aspirar condições de maior liberdade; sociedades, como indivíduos, passam por processos evolucionários de amadurecimento, e seria ingenuidade sugerir que o modelo de democracia ocidental, alcançado através de séculos de luta, pudesse – ou deveria – simplesmente ser transplantado para países com histórias e padrões culturais diferentes. Neste sentido, uma sociedade plenamente democrática tem que ser desenvolvida por um povo através da experiência. E da mesma forma que ninguém afirmaria que todo indivíduo está presentemente em forte ressonância com a pura energia do Amor, a mesma afirmação pareceria também enganosa com respeito a nações. Onde atua a aprovação da pessoa de boa vontade? Na difícil, mas necessária tarefa de investigar um pouco mais profundamente sempre que é proposto que a solução para os males de um país é “mais democracia”. A expansão da liberdade deve e há de ser apoiada a todo o momento, mas o caminho de cada nação para este exaltado objetivo é único, e nenhuma nação pode proclamar ter chegado ao final. A liberal democracia não é uma máquina que pode ser acionada com manivela sempre que necessário, mas, com uma sutil e contínua negociação entre o povo e seus governantes. Refletir sobre suas profundas dimensões psicológicas pode ajudar a sermos mais cautelosos com respeito a recomendá-la em todas as circunstâncias.

(1) Que deve ser auditado, explicando a crescente intranquilidade sobre voto eletrônico sem registro impresso.
(2) Hitler, por exemplo.
(3) Fareed Zakaria, “The Future of Freedom”. W W Norton & Co, 2004.

Liberdade Espiritual

O princípio de liberdade está profundamente arraigado, e tem sido expressado nas grandes declarações históricas como a Carta Magna, as declarações das revoluções americana e francesa, a Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, e a Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos. Como, então, se mede o princípio de liberdade numa liberal democracia?

A liberdade individual não é absoluta; ela só pode ser exercida plenamente considerando os mesmos direitos de seus concidadãos. Num mundo ideal deveria haver um equilíbrio de direitos e responsabilidades através do sacrifício do interesse individual, contribuindo assim para o “bem comum”. De uma perspectiva moral o bem comum, sendo o bem da Totalidade, deveria se aplicar não somente aos cidadãos de uma liberal democracia, mas também a todos os povos do planeta. Por conseguinte, a liberdade exercida por um cidadão em alguma parte do mundo não deveria contrariar a liberdade de alguém em outro lugar. Embora isto possa parecer idealista, é somente quando uma nova visão progressiva mais elevada é percebida é que maneiras mais evoluídas de pensar emergem nas mentes humanas.

Existe, hoje, uma percepção de que tudo está muito mais estreitamente conectado do que antes – daí a metáfora da aldeia global. Entretanto, num mundo de comércio global, mercado financeiro e de energia, pode o cidadão individual ser plenamente livre quando desastre financeiro pode ocorrer por capricho de um banqueiro? Todavia, a verdadeira democracia não está fundada no materialismo ou consumismo, mas certamente é um impulso fluindo do espírito da humanidade, o que libera valores mais elevados à energia da boa vontade na consciência humana.

No entanto, os mundos espiritual e material devem se reunir e interconectar-se, porque são os dois lados da mesma moeda. Assim, os valores e princípios espirituais têm que ser ancorados e aplicados à vida em todos os seus vários aspectos. Apesar de tudo, os grandes movimentos humanitários e de assistência social, e os numerosos indivíduos e organizações que trabalham continuamente para aliviar o sofrimento humano, têm suas raízes nos mais altos valores e no sacrifício do interesse individual. Agora, a crise ambiental está proporcionando um acrescido impulso para um comportamento mais altruísta e forçando a humanidade a pensar de modo imaginativo em formas de viver mais em harmonia com o planeta. Os numerosos indivíduos e grupos cujos motivos são fundados num espírito de cooperação mútua e responsabilidade em ação são testemunhos vivos dos valores superiores que sustentam a verdadeira democracia. É desafiador considerar que numa época de grande realização intelectual, o próximo passo à frente para a humanidade seja tornar-se mais receptiva àqueles valores superiores que iluminarão o mundo material.

Um dos pilares fundamentais da democracia é a liberdade de palavra e de expressão, e estamos vendo completo desenvolvimento evolucionário nesta época, com cidadãos em muitos países sendo capazes de expor seus pensamentos na Internet sobre qualquer tema sob o sol. Existem inumeráveis “weblogs” (1), bem como um rápido aumento de sítios de redes sociais. Governos locais e nacionais também estão se abrindo para a ideia de “e-democracia” (2), e há discussões sobre votos pela Internet com cidadãos nestes momentos capazes de formular petições aos governos por “email” (correio eletrônico). Embora a Internet seja um desenvolvimento positivo, os cidadãos devem tomar cuidado para exercitar a liberdade de comunicação responsavelmente com um espírito de mútua tolerância, caso contrário as conversações podem descer a um nível baixo. A Internet, como a mente humana, tem seus aspectos altos e baixos. Pode ser usada como uma ferramenta criativa para promover a verdadeira democracia, mas também pode ser uma arma destrutiva a serviço dos interesses pessoais, promovendo intrigas perniciosas e insinuações.

Todas as pessoas de boa vontade que demonstram um espírito inclusivo e tolerante estão ajudando a romper barreiras e promover a verdadeira democracia. A energia da boa vontade traz tolerância para os pontos de vista dos outros e cria uma atmosfera baseada na compaixão e entendimento compartilhado. É uma energia que levará a humanidade em direção a um sábio compromisso onde for necessário e a uma mútua cooperação para o bem da Totalidade.

(1) (“weblog”, ou simplesmente blog, tipo de jornal compartilhado na Internet onde pessoas podem postar diariamente assuntos sobre suas experiências pessoais e atividades de recreio. NT).
(2) E-democracia, uma combinação das palavras “eletrônica” e “democracia” englobando o uso de tecnologias de comunicação eletrônica, como a Internet, para melhoria dos processos democráticos nas repúblicas democráticas ou democracias representativas. É uma evolução política ainda na sua infância, bem como tema de muito debate e atividade nos governos, grupos de orientação cívica e demais sociedades ao redor do mundo. (NT, fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/E-democracy)

Uma Nova Visão de Cidadania

A ideia que as pessoas devem participar de seus próprios governos está no núcleo da nossa compreensão do significado de democracia. O filósofo Aristóteles escreveu: “Se a liberdade e a igualdade, como pensam alguns, são encontradas, principalmente, na democracia, elas chegarão à sua máxima expressão quando todas as pessoas compartilharem igualmente o máximo do governo”. O experimento democrático da Grécia antiga é ainda, com justiça, respeitado como um fenômeno extraordinário. O moderno estado-nação, com sufrágio universal adulto, e populações de muitos milhões, tem claramente de funcionar de uma forma diferente e nem todos os modos são democráticos. A maioria das democracias modernas dá a seus povos a oportunidade de eleger um governo a cada quatro ou cinco anos. Entre as eleições o governo segue seus programas e agenda legislativa com altas e baixas de impostos, deixando as pessoas que o elegeu continuarem com suas vidas em relativa liberdade. Embora chamemos este sistema de democrático, ele está certamente muitos passos distantes do ideal do contínuo e pleno envolvimento de todo o povo.

Então, numa moderna democracia, quais são as responsabilidades do cidadão? Como ele pode participar “o máximo” do governo, como Aristóteles disse? É óbvio que o primeiro e mais importante dever é que todos nós estejamos interessados nos assuntos políticos e econômicos diários, que pensemos neles de uma forma construtiva, discutindo-os e votando sempre que ocorrer a oportunidade. Pensar criativamente sobre esses assuntos é uma real contribuição para encontrar soluções e também aceitar soluções que podem ocasionalmente serem desagradáveis a muitas pessoas. Entretanto, há muita falta de estímulo para isto.

Muitos presumem que a política é corrupta porque os membros eleitos são tentados a sujeitar seus princípios às sedutoras promessas do “lobby” de grupos comerciais e industriais. Embora esta seja uma injusta caracterização de muitos membros probos e honestos, há o bastante de verdade nisto para contaminar o todo.

O remédio para esta situação está nas mãos das comprometidas pessoas de boa vontade. Se mais pessoas de boa vontade estivessem envolvidas e se candidatassem às eleições em todos os níveis de governo, isto ajudaria a neutralizar a intriga e a corrupção. Como Alice Bailey escreveu: “A razão para a corrupção política e o ganancioso e ambicioso planejamento da maioria dos homens de liderança do mundo pode ser encontrada no fato de que as pessoas espiritualmente orientadas não assumiram – conforme seus deveres e responsabilidades espirituais – a liderança dos povos. Deixaram o poder em mãos erradas e más e permitiram os egoístas e indesejáveis governarem.” (Problemas da Humanidade, pág. 168)

O desestímulo mais sutil está na convergência de ideologias opostas de direita e de esquerda para predominância sobre o grupo do centro (posição política situada entre os extremos de direita e de esquerda, NT). Na Europa, sob circunstâncias normais, o partido que é capaz de ocupar a posição de centro é que ganhará a eleição. Naturalmente isto está gerando partidos políticos opositores que realmente não têm políticas opostas, manobrando pela predominância do centro. Alguns argumentam que isto é um aprimoramento sobre a antiga posição faccionária e antagônica da esquerda e da direita, mas está gerando apatia no eleitor já que os partidos farão parte do governo e suas políticas serão basicamente as mesmas, salvo diferenças superficiais. Noam Chomsky coloca isto muito friamente quando escreve: “O que resta de democracia é basicamente o direito de escolher entre mercadorias.” Esta tendência resulta que muitas pessoas de boa vontade têm abandonado os partidos políticos para se envolverem em campanhas isoladas tais como os inúmeros projetos de desenvolvimento, movimentos ambientalistas e direitos humanos.

Isto nos leva a outro desestímulo, a maneira como os meios de comunicação dão cobertura aos assuntos políticos do dia. Nesta nossa era digital tem havido uma proliferação de canais de televisão e de rádio, e os dirigentes dos meios de comunicação estão constantemente enfrentando o problema de como aumentar suas audiências, particularmente importante se seu canal depende de propaganda. Os jornais também estão experimentando, em geral, uma queda nos níveis de circulação e respondem a isto com manchetes cada vez mais extravagantes e melodramáticas. Frequentemente a cobertura política agora parece ser mais sobre eventos sensacionais do que sobre tendências, mais sobre as personalidades envolvidas do que os princípios em debate. Os efeitos desses desestímulos parece ser uma queda generalizada no interesse do que é público. Entretanto, como mostra a atual campanha presidencial nos Estados Unidos, quando as questões são suficientemente críticas e aparece um político de certo modo correto, em sintonia com o sentimento popular, o interesse pode ser revigorado, tanto em geral quanto talvez de maneira muito mais importante entre os eleitores jovens.

Precisamos neutralizar o pessimismo vendo a democracia como uma experiência universal. A percepção do bem grupal e o espírito de cooperação são qualidades inerentes à humanidade. A realização disto é um contrapeso muito necessário à visão largamente aceita e incorreta de que a natureza humana é basicamente conflituosa e violenta, e que somente sistemas autoritários de governo podem controlar esta tendência. Tem sido dito que a qualidade básica da humanidade pode ser descrita numa frase: “harmonia através do conflito”. Embora um dramático sentido e uma mórbida predileção pelo sofrimento mantêm o lado “conflito” desta dupla como predominante nas mentes de muitas pessoas, o lado mais vulgar – “harmonia” – tem sempre se manifestado e continua florescendo nos encontros, assembleias e parlamentos, nos clubes e conselhos por todo o mundo.

Um dos mais extraordinários eventos dos últimos 100 anos é a forma que a democracia tem florescido por todo o mundo. Em 1900 nenhum país podia ostentar uma democracia multipartidária impulsionada pelo sufrágio universal. Em 1997 60% das nações do mundo podia ostentar isto. Agora, em 2008, dos 194 países do mundo, somente 54 são considerados como não democráticos e autoritários e os outros tendo regimes parcial ou plenamente democráticos.

Existem numerosas razões externas para isto: o crescimento da educação de massa – argumentavelmente o mais importante acontecimento no mundo nos últimos 150 anos; a extensa área do crescimento econômico; o desenvolvimento das comunicações mundiais como a Internet que expõe todos em qualquer lugar a novas ideias e um sentimento de estar ligado com toda a família humana; viagens internacionais a preços acessíveis. Todos esses fatores ampliam nosso pensamento.

Essas causas são relevantes. Mas as causas espirituais internas para esse avanço em direção à democracia são, no final das contas, mais importantes e, por conseguinte, são a nossa essência. Poderíamos expressar essas causas espirituais da seguinte maneira:

-O desejo por liberdade, entendido espiritualmente.

-O crescente sentido de responsabilidade e o impulso da alma para expressar isto em serviço prático.

-O reconhecimento da consciência grupal.

-A constatação de que um grande grupo responsável por um eleitorado pode ter o poder para anular ou negar o egoísmo de uma ambiciosa facção dominante.

Essas causas espirituais estão irrompendo no mundo do pensamento e das atividades humanas de inúmeras maneiras. Como todas manifestações de ideias espirituais, elas estão sujeitas a variados graus de distorção. O desejo por liberdade no sentido espiritual foi, talvez, melhor formulado por Franklin Roosevelt nas “Quatro Liberdades” – liberdade de palavra e livre expressão, liberdade de culto, liberdade de viver sem carência e penúria, liberdade de viver sem medo. Mas, se elas não estiverem atreladas com o correspondente senso de amorosa responsabilidade para com a totalidade, podem tornar-se distorcidas por motivos egoístas para a libertinagem, a superstição, o engrandecimento pessoal à custa de outros, e o armazenamento de armas.

A conscientização das limitações do pensamento humano e da difundida prevalência de motivos egoístas conduz de maneira natural as pessoas de boa vontade a considerar como melhor pode ajudar a promover o aspecto bom e a neutralizar o negativo. À parte de se engajar na política, há muitas outras formas com as quais uma pessoa responsável pode ajudar a comunidade, a nação e o mundo. Todas podem ser resumidas nas palavras “cidadania prática”.

Por exemplo, considerar a cidadania em relação com a responsabilidade econômica. Alguns veem, na melhor das hipóteses, os impostos como uma realidade aborrecida; outros como uma oportunidade para trapacear. Mas, um cidadão responsável vê os impostos como uma fórmula de contribuir financeiramente com a totalidade da qual os impostos fazem parte; então, eles são corretamente percebidos como uma oportunidade de servir. Também precisamos recordar que nossa contribuição financeira não termina nas fronteiras locais ou nacionais. Nosso crescente sentido de cidadania global deveria já estar nos conduzindo, todos nós, a exigir de nossos representantes eleitos e governantes a estar à altura de uma responsabilidade financeira global e a fomentar uma “contribuição ética”. Em conexão com isto, e como cidadãos globais responsáveis, deveríamos também dedicar tempo e energia a apoiar o trabalho das Nações Unidas. As oito “Metas de Desenvolvimento do Milênio” foram formuladas sob os auspícios da ONU com o propósito de reduzir significativamente até 2015 a pobreza e a fome, o mal endêmico da saúde, a desigualdade entre os sexos, a ausência da educação, a falta de acesso à água limpa e potável e a degradação ambiental. Para alcançar essas metas vitais é necessário o compromisso de apoio dos cidadãos mundiais de todas as partes, tanto para manter a visão perante os olhos da humanidade, como para pressionar os nossos crescentes governos democráticos a agirem de acordo com suas promessas para adequado financiamento aos programas necessários. Começaremos, então, coletivamente, a manifestar as palavras visionárias de Barbara Ward, que escreveu: “É uma questão nossa, os povos do mundo fazendo algo para ajudar os povos do mundo”.

Shakespeare observou que: “O curso do verdadeiro amor nunca transcorreu com suavidade”. Poderia igualmente ter dito com precisão que o curso da verdadeira democracia nunca transcorre com suavidade. Esta comparação entre amor e democracia não é coincidência, mas, como vimos, na origem da democracia está a alma, o princípio de amor na humanidade. O que chamamos democracia é simplesmente uma expansão da ideia de cooperação e de responsabilidade grupais num nível nacional e supranacional.

Então, qual é o futuro da democracia agora? Podemos estar seguros de que os próximos anos provarão a humanidade em extremo. Em parte essa prova será caracterizada por uma enorme tensão entre o desejo de alguns de impor soluções às crises da humanidade de uma forma autoritária e o desejo da maioria de manter a iniciativa criativa e potencial para alcançar a solução de forma consensual sob inspiração da alma. A primeira é o caminho da ditadura e, embora ela possa resolver problemas, a humanidade não terá se beneficiado ou crescido espiritualmente com base no entendimento das questões envolvidas e ter feito escolhas corretas. A segunda é o caminho democrático, o caminho da alma da humanidade. É o maior desafio jamais enfrentado pela democracia e pela humanidade. Mas com boa vontade desenvolvida e disseminada estaremos à altura do desafio.

Democracia e Transmutação - da consciência individual à grupal

Idealmente, numa democracia, todo mundo, cada pessoa, deveria ser um dos governantes, um membro desse grupo que é o governo coletivo de seu país. Em outras palavras, numa democracia todo mundo deveria ser político. Um político (do antigo termo grego “polis” - cidade-estado) é alguém que está preocupado com os assuntos públicos e deles participando. Na Grécia antiga o termo idiota significa alguém que está preocupado apenas com seus próprios assuntos particulares, sendo indiferente aos interesses públicos.

É comumente sabido que alguém precisa de assessores para tomar decisões corretas sobre coisas que ignora. É fundamental que essas decisões sejam sábias. Num diálogo famoso, Sócrates perguntou: Qual é o trabalho dos políticos? Qual sua tarefa? Se você está doente, você precisa de um médico. Se você precisa de um par de sapatos, você busca um bom sapateiro. Então você precisa de alguém com habilidade profissional e especialização. Sócrates estava tentando descobrir quais são as habilidades de um político. Posto que tudo que faz com que alguém se torne uma pessoa civilizada, um membro de uma sociedade, um cidadão, é ser instruído e especializado, qual é o caminho para fazer isto? Que tipo de disciplina é necessária para isto?

A ideia de Democracia nasceu nas relativamente pequenas cidades-estado gregas, numa época em que os diferentes regimes na maioria delas evoluíram da monarquia tradicional à aristocracia e tirania e daí à democracia, num período de tempo significativamente curto. Idealmente foi uma transição do regime de um só monarca ou rei, para um regime de muitas pessoas iguais (ou reis), todos juntos chamados Demos (homem do povo) ou Commons (comum). Numa antiga cidade-estado havia potencialmente muitos reis (na realidade, todos guerreiros) e somente um reino. Portanto, não havia muitas maneiras de resolver esta profunda contradição. Historicamente a primeira solução foi a tentativa de eliminar os rivais, terminando no desastre da guerra civil. A solução seguinte foi o acordo, o compartilhamento, a Constituição.

Portanto, Democracia é um estágio na evolução política onde os “muitos”, como reis em potencial, chegam a um acordo para juntos governarem sob um sistema de normas. É um sistema de cidadania baseado não mais na suposta nobreza do sangue, mas claramente no interesse comum da cidade-estado, e no senso de compartilhar o mesmo destino. Era crucial que os membros dessa comunidade fossem considerados com direitos iguais para governar a cidade. Tinham que obter este privilégio e lutar para mantê-lo. De fato, cidadãos nessas Democracias eram todos guerreiros antigos (os velhos). Todo o resto da população não era igual. Eram escravos, imigrantes, mulheres e crianças. O conclave desses reis-guerreiros era o seu parlamento. As cidades eram pequenas. Todos podiam se reunir num só local chamado “ágora” (praça principal na constituição da polis, a cidade grega da Antiguidade Clássica).

Nessas reuniões eles tinham que descobrir uma forma de gerenciar e dirigir os assuntos de Estado. Era crucial que convencessem os demais cidadãos da correção de suas propostas. Para este propósito eles precisavam de argumentação e inteligência. Assim, lado a lado com as artes marciais, começaram a se treinar na arte da eloquência/retórica. Mas, ser simplesmente eloquente não é suficiente, a menos que alguém seja conhecedor do assunto em questão. Então, tinham que saber de tantas coisas quanto possível. Assim, surgiu a necessidade de um novo tipo de homem: uma síntese de um guerreiro, um intelectual, um cientista, um conselheiro, uma pessoa liberal com forte senso de interesse comum e conscientização grupal: um verdadeiro político. Isto foi, literalmente, na história humana, uma transmutação na evolução. Surgiu uma nova espécie diferente do homem físico dos campos e da imensidão selvagem. Temos aqui o nexo com o que poderíamos chamar uma verdadeira democracia.

Agora sabemos que a consciência grupal é o resultado de um processo que transforma o ser humano enfocado em seus assuntos privados num político. Um verdadeiro político é alguém com consciência grupal. Quando falta isto, um político é alguma espécie de homem de negócios. É motivado por interesses pessoais, não pela motivação superior do interesse público. Portanto, ser um verdadeiro político é o destino de todos. Entretanto, entrar no mundo da consciência grupal, o mundo da verdadeira política, é uma questão de decisão pessoal e de treinamento.

Democracia e Representantes do Povo

Nas sociedades modernas é impossível que todos se reúnam pessoalmente juntos num parlamento. Assim, vários sistemas de representação foram inventados ao longo das épocas. Temos aqui, novamente, o mesmo problema como nas antigas democracias. Quantos representantes são adequadamente suficientes? Como seriam indicados para suas atribuições? Por quanto tempo? Quem seria o representante ideal?

É totalmente sem dúvida que o representante ideal seria aquele que tivesse interesse igual ao do representado e mais preparado, quanto possível, ao promover seus objetivos. A teoria política moderna tem aceitado, mais ou menos, a análise marxista segundo a qual toda sociedade é dividida em classes que lutam para impor seus próprios interesses grupais sobre os demais grupos. Mas aqui há certo tipo de contradição. Se for estabelecida alguma percentagem específica de representação, digamos algo em torno de 50.000 ou 100.000 pessoas, poderia ser pensado que os representantes dos pobres seriam mais numerosos que os dos ricos. Mas, não é o caso. Por quê?

Em teoria política não é bem reconhecido que se consideramos a divisão de classes e as imaginamos num eixo horizontal, há também um eixo vertical. Esse eixo vertical representa o “status” educacional ou, mais exatamente, o grau de realização espiritual do povo. É improvável que um agricultor inculto seja eleito por seus pares para representá-los num parlamento. Aqui está o maior problema das democracias modernas. Não há jeito de todas as classes ou grupos sociais serem suficientemente representados, a menos que uma parte importante deles seja suficientemente educada. Este tipo de educação é levemente diferente do sistema educacional médio das modernas sociedades. Deveria ser um sistema de produzir mais cidadãos do que funcionários de empresas ou executivos. Em última análise, um homem verdadeiramente livre, que merece viver numa democracia é alguém que tem o espírito de igualdade: alguém que tem o senso de total responsabilidade para com o todo, que tem consciência grupal e que está disposto a servir às necessidades do bem-estar comum.

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