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MISTÉRIOS E MAGIAS DO TIBETE
Chiang Sing


Parte I - Resumo:
Apresentação
Prelúdio de uma longa experiência
Primeiro contato com a terra e o povo de Sikkin
A Festa das Flautas Pastoris
A Verdade sobre a Suástica
O Buda Vivo de Sikkin
A Sagrada Festa de Wesak

Apresentação

Tempos atrás, quando publicamos no "Diário de Notícias" e nos "Diários Associados" do Rio, vários artigos sobre nossa viagem ao Tibete, muitos leitores nos escreveram para a direção do jornal, querendo saber como é a vida entre os Lamas, como são seus Templos, seus deuses e suas crenças. (1)

Neste livro procuramos satisfazer esta benévola curiosidade. Fomos ao Oriente buscando os donos da sabedoria milenar e seus ensinamentos secretos. Durante esta busca que durou três anos, viajamos pela China, Índia, Nepal e Tibete, entrevistando diversos místicos e magos destes longínquos países. Todavia, nesta obra focalizamos apenas a parte referente ao Tibete - o País das Neves - como é considerado por muitos, que dizem ser o Tibete a pátria do mistério e do impossível.

Como introdução, citaremos alguns dados gerais, por certo já conhecidos pela maioria dos leitores, mas cuja repetição é sempre interessante.

Tibete é o nome de uma terra montanhosa na Ásia Central. O nome dado ao Tibete pelos seus primeiros habitantes é "P'O" ou "BOD", que significa o "País das Neves". Tem cerca de 1.255.000 quilômetros quadrados, onde vivem três milhões de habitantes de origens étnicas as mais diferentes. Chineses, turcos, mongóis, misturam-se com os habitantes "mon" aborígines de outras regiões e os remanescentes da invasão indo-ariana, que ocorreu na Índia milhares de anos atrás.

A população entrega-se à agricultura nos vales e à criação de cabras chamadas "Dzo" de cavalos de várias raças e de um tipo de jumento muito forte, o "Kyang", que é o grande veículo de transporte nos estreitos caminhos das montanhas.

Sabe-se que até o século VII da nossa era, o Tibete vivia isolado dos seus vizinhos. A única religião era uma espécie de panteísmo mágico com sacrifícios oferecidos aos deuses que vagamente representam as forças da Natureza, e seres encantados. Estes seres encantados ou elementais, têm grande semelhança com a crença e os ritos umbandistas do Brasil, onde os verdadeiros "orixás" são sempre seres encantados que nunca encarnaram e os "exús" vêm a ser muito parecidos com os "Tísas" - demônios ou semideuses tibetanos, que se alimentam do sangue dos animais sacrificados em sua homenagem.

No século VII, reinava no Tibete, Sang Tsen-Gampo, e este rei, no decorrer de suas guerras de conquistas, acabou casando com duas princesas: uma chinesa e outra nepalesa. Ambas eram budistas fervorosas, e conseguiram fazer com que o rei deixasse seus ritos sanguinárias e se convertesse ao Budismo. Song Tsen Gampa resolveu então enviar um emissário especial à Índia, a fim de trazer livros e objetos sagradas. Este emissário teve um papel de destaque na história cultural do Tibete, pois além dos livros, trouxe consigo a gramática e o alfabeta. Mas foi um outro rei que trouxe para a Tibete o célebre sábio budista Padma Sambhava, da Universidade de Nalanda, na Índia. No ano 747 veio ele para o Tibete com suas duas esposas. Foi ele o grande instrutor da religião tibetana e tornou-se conhecido como o Guru Rimpoche. Tinha grandes poderes místicos e conseguiu dominar os feiticeiros "Bon". Sendo uma religião de total tolerância, admite o Budismo no seu panteão as mais diversas divindades tibetanas, disso resultando um sincretismo religioso, que constitui a escola Vajra-Yana, isto é, o Lamaísmo. Esta religião caracteriza-se pela mistura de ritos mágicos e cerimônias que produzem verdadeiros milagres. Um terço da população masculina do Tibete pertence ao sacerdócio. (2)

O Dalai Lama é o seu chefe simbólico e corresponde ao Papa. Diz a tradição que até bem pouco tempo viviam no Tibete os "Senhores do Conhecimento Secreto", os misteriosos sábios que possuem em seus arquivos a verdadeira história dos lendários continentes desaparecidos: Lemúria e Atlântida - bem como a história da humanidade futura, da qual eles tiveram uma bela visão intuitiva. Diz outra tradição oriental, que estes sábios viveriam no Tibete enquanto os estrangeiros não invadissem o seu país. Sem dúvida, este deve ser o verdadeiro motivo pelo qual o Tibete foi uma terra inacessível para os estrangeiros durante séculos.

Com a invasão do Tibete em maio de 1950, provavelmente estes sábios misteriosos deixaram o Teto do Mundo, pois sabiam que isto seria o sinal de que ciclo da evolução tinha mudado para o Ocidente. Esta invasão do Tibete foi prevista pelos "tsipas" ou 'astrólogos tibetanos no ano de 1850 e escrita num documento intitulado "Fatos que ocorrerão no ano do Dragão e da Madeira." Em 1904, o documento foi visto pelo Coronel Younghusband - chefe das tropas britânicas que regiam o Tibete. E neste curioso documento - diz Sir Charles Bell - encontra-se prevista a 1ª. e a 2ª. Grande Guerra; a morte do 13º Dalai no ano de 1924, o ocaso do misticismo tibetano e finalmente a invasão de Tibete pelos "Filhos da Fênix Vermelha" (comunistas) em 1950. Diz ainda que "a luz da sabedoria" voltará a brilhar no Ocidente, e em especial na terra de "O Fu Sang" (América da Sul).

Como sabemos, o Tibete foi invadido pelas tropas comunistas chinesas em 1950, tendo o 14º Dalai Lama, que reinava na ocasião, fugido para a Índia onde se encontra até hoje. E como a primeira parte da profecia já se realizou, é lícito esperar que a segunda também venha a tornar-se realidade. Isto é, que a grande luz espiritual passe a resplandecer na América do Sul. Durante minhas andanças pelo Tibete fui testemunha de acontecimentos raros, entrei em contato com um povo estranho e misterioso e tive a felicidade de encontrar meu Guru, o Lama Dawa Kazi, que me iniciou no segrede das Chamas Cósmicas.

Muitas são as pessoas incrédulas que ainda hoje me perguntam:

- "Mas... você viu mesmo tudo a que diz neste livro?"

Minha resposta é sempre a mesma:

- É claro que vi! Somente não posso afirmar se foi com meus olhos físicos ou meus olhos espirituais.

Ouso dizer ainda, para refrescar a memória dos amados leitores que tal como diz o velho "Shan Hai King" ou Livro das Terras e Mares:

"As coisas que o homem conhece verdadeiramente, não podem ser comparadas em número com as que lhes são desconhecidas..."

Chiang Sing

Refúgio Tranquilo. 18º dia da 5º mês da 2ª Lua dos Primeiros Frios. Ano do Dragão. Vigília das Cinco Estrelas.

Notas:
(1) Naquela época ainda não tinham sido publicados os livros de Lobsang Rampa, e pouco se conhecia no Brasil sobre o Tibete.
(2) Isto era assim antes da invasão chinesa em 1950.
Edição de 1978, cedida e distribuída gratuitamente pela autora Chiang Sing.


Prelúdio de Uma Longa Experiência

O trem atravessou as planícies de Bengala, aos pés dos montes Himalaia, e penetrou em solo nepalês. Uma chuva fina e persistente começava a cair cobrindo a paisagem brumosa. As árvores, ao longe, eram quase invisíveis naquela feia tarde de inverno. Era o 25º dia do 3º mês do ano do Búfalo.

Siligur, nossa última etapa indiana, já estava a mais de duas horas de distância. No vagão do trem em que viajávamos, transitavam pessoas dos mais estranhos aspectos, ora um camponês com um vasto cesto de cereais, ora um grupo de moças e rapazes indianos, que iam gozar os esportes de inverno no clima gelado de Gangtok. Um garçom indiano de pele bronzeada, túnica branca e turbante vermelho, servia chá aos viajantes. Bebemos a infusão leve e dourada, enquanto olhávamos as curiosas paisagens que se sucediam pela janela do trem.

Havia quase dois anos que eu deixara meu cargo jornalístico na Embaixada da China no Brasil e, graças a uma bolsa de estudos, seguira para Los Angeles, como correspondente internacional do Diário de Notícias no Rio, seguindo depois para Hong Kong, Shangai e Pequim, onde ingressaria numa Universidade para especializar-me em Sinologia. Mas, com o início da guerra civil na China saí às pressas de Pequim e fui para a Índia. Lá, encontrei o Dr. Ananda Vessantára e sua esposa Mahima, a quem fora recomendada pelo Ministro Koo, ex-Embaixador da China no Brasil.

Com o casal Vessantára viajei através da Índia, ficando algum tempo nas grandes cidades: Bombaim, Ellora Ajanta, Calcutá, Khajurao, Jaipur, Agra, Nova Delhi, Srinagar e Ladak em Cachemira. Visitamos a colorida Peshawar com seus palácios de mármore perdidos na selva, verdadeiras maravilhas das Mil e Uma Noites.

Nestes lugares procurei entrevistar Marajás e Emires, magos e ascetas. Vagarosamente e gradualmente, minha mente foi sendo preparada para a mais fascinante jornada que alguém pode fazer em pleno século vinte, a única viagem que pode levar um viajante a um mundo diferente e maravilhoso.

E foi assim, que naquela feia tarde de inverno, encontrei-me num trem saindo de Siligur, importante cidade de Bengala, passando por Katmandu e chegando à Gangtok, no Nepal, aos pés dos Himalaias.

Acompanhava-me a Dr. Ananda Vessantára, sua esposa Mahima e o arqueólogo francês Pierre Julien Lafoil. Todos estávamos interessadíssimos em conhecer a misteriosa terra dos Lamas, porém jamais poderíamos prever as consequências extraordinárias daquela viagem.

Chovia forte quando chegamos à estação de Gangtok, capital do Estado de Sikkim - ante-sala do Tibete. Um risonho carregador de face larga e bem mongólica, veio ajudar-nos na descida das malas. Um representante do Governo do Nepal esperava, para, de automóvel, nos conduzir ao palácio do Rajá Dorge, onde ficaríamos hospedados. Um vento frio entrava pelas frestas das vidraças do carro, obrigando-nos a aconchegar ao rosto a gola de nosso casaco de peles. Atravessamos o mercado de Kalimpong, cruzando aquele curioso mundo de faces mongólicas, cuja semelhança com os índios brasileiros é impressionante. Isto nos fez pensar na conhecida teoria científica de que nossos índios pertencem ao mesmo tronco da raça mongólica, cujos ramos se espalharam uns pelas Américas e outros pelo sul dos montes Himalaia.

Saltamos em frente da enorme escadaria de mármore branco do palácio do Rajá Dorge, Embaixador da Índia no Nepal. Fomos recebidos por dois senhores indianos que nos deram as boas vindas e nos conduziram ao interior do palácio.

Entramos e tudo nos pareceu um sonho, tão exótica era sua mobília e tão rico o colorido da sua esplêndida decoração oriental. Lindos tapetes tecidos a fio de ouro ornavam as paredes. Em mesinhas de ébano, finamente entalhadas, viam-se antigas esculturas de bronze, representando deuses indianos. Tapetes grossos, e brilhantes forravam o chão. Espalhados sobre os tapetes vimos almofadões de seda bordada com flores raras. No fundo do salão, vimos uma lareira forrada com lâminas de cobre, em frente a uma formosa pele de tigre.

O Rajá entrou, usando uma grossa túnica de lã verde oliva, sobre calças brancas ajustadas nos tornozelos. Era um homem alto e delgado, de uns cinquenta anos presumíveis. Sua pele era bem morena, queimada de sol, olhos escuros sobrancelhas espessas, nariz fino, boca cheia e um pouco protuberante. Seu turbante de seda branca brilhava, ornado com uma estranha joia cintilante. Atrás dele vieram suas três esposas, esguias, morenas e formosas, vestindo "saris" deslumbrantes. Deram-nos as boas vindas com um claro sorriso.

Após uma breve conversa, levaram-nos aos nossos aposentos, para um merecido descanso. Horas mais tarde, refeita por um banho perfumado com rosas brancas, vesti uma túnica de seda azul bordada de dragões e fui ao encontro de nossos anfitriões. Durante o jantar, à moda indiana, serviram-nos diversos pratos deliciosos.

Após o jantar, fomos para o salão de música e o Rajá muito animadamente, contou-nos algo sobre sua vida. Soubemos que conhecia toda Europa, América do Norte e Oriente Médio. Relatou-nos pitorescas aventuras na China e no Nepal, e o que é mais estranho, sua vida num misterioso mosteiro budista em Ladak, onde na mocidade tinha passado um longo período de recolhimento espiritual.

Em breve falávamos sobre assuntos mais amplos encarando a antiga sabedoria hermética do Oriente.

E o Rajá falou:

- Alguns ensinamentos de nossos antigos sábios chegaram ao Ocidente de maneira um pouco deturpada pelas traduções. Daí os exageros que se cometem no Ocidente, em nome da ciência oriental.

Íamos retrucar quando fomos interrompidos pela voz suave da "Rani" (princesa primeira esposa), que acompanhando-se ao alaúde indiano chamado "Vina", cantou no doce idioma bengali. Eram canções poéticas, que me foram traduzidas para o inglês, pela senhora Vessantára.

Quando a "Rani" terminou, perguntei-lhe de quem eram aquelas canções.

Foi o Rajá quem respondeu:

- Então a jovem senhora não conhece estes textos dos nossos Upanishads?

Confessei minha ignorância que começava por não saber sequer o que significava a palavra Upanishads.

- Upanishad - continuou o Rajá - é uma palavra sânscrita. Significa a conquista da inteligência dominando a ignorância. São escrituras santas que fazem parte das antigas tradições védicas. Segundo alguns estudiosos estas escrituras são ao todo 150. Segundo outros seu número é de 112. Nelas encontramos a explicação mística do Universo, da Natureza e do Criador. Eis aqui a tradução de um texto que acaba de ser cantado pela "Rani":

"Assim como uma aranha produz e recolhe a sua teia, assim como procedem os cabelos da cabeça e do corpo de um homem vivo, Do imperecível proveio tudo que aqui está.

Assim como de uma fogueira procedem as fagulhas de natureza semelhante, apesar de serem de número incontável, Da mesma forma, ó meu caro, do imperecível procedem as várias espécies de seres, que novamente a ele voltarão".

"Os rios do leste e do oeste originam-se no oceano e a ele retornam, embora não saibam que assim procedem. Da mesma forma, são todas essas pessoas que provêm do Grande Ser, embora não saibam que do Ser provêm".

"Aquilo que constitui a essência sutil, aquilo que em tudo o que existe tem a sua própria essência, é o Verdadeiro Ser. E tu és esse Ser".

No Tat Tvan Asi - Tu és aquilo - está resumido todo o ensinamento dos Upanishads.

Eu ouvia atentamente aquelas palavras. Elas enchiam meu coração como a fumaça do incenso enche o altar de um templo. Mas, súbito, o Rajá calou-se. Pouco a pouco tinha elevado a voz, impelido pelo entusiasmo de suas palavras. Todos esperavam que ele continuasse e ficamos em muda expectativa.

Foi então que o arqueólogo Pierre Julien perguntou:

- E a lenda dos sete cisnes do lago Manasarowar? Tem relação com os Upanishads?

O Rajá pareceu sair de dentro dos seus pensamentos.

- Sim... dizem remotas tradições que foi às margens deste lago sagrado que os Sete Senhores Sublimes - primeiros instrutores da raça ariana - falaram sobre os ensinamentos secretos dos Upanishads. Desde então, dizem que todos os anos, na manhã do primeiro dia da primavera na Índia, sete cisnes brancos sobrevoam o lago e depois desaparecem rumo ao monte Meru. Só retomam no ano seguinte, no mesmo dia e na mesma hora. Consta que estes cisnes são os Sete Senhores Sublimes que disfarçados de cisnes velam continuamente, pela humanidade e aguardam trinta mil anos para renascer. Surgem em forma de cisnes, porque, segundo a Mitologia hindu, esta ave personifica a sabedoria universal. É o símbolo de Brahma - o Criador - que também é chamado "Hansa Vahara", isto é, "o que usa o cisne como veiculo".

Ante o relato do Rajá, o tempo parecia ter sido aniquilado. Entretanto, na realidade, a noite avançava rapidamente. Era preciso repousar. Ainda nos restavam algumas semanas no Nepal, antes de partirmos para o Tibete. Ainda tínhamos muito que aprender com o Rajá Dorge.


Primeiro Contato com a Terra e o Povo de Sikkim

Na manhã seguinte, bem cedo ainda, saímos para visitar Gangtok. Dispensamos o automóvel e preferimos montar nos bonitos cavalos nepaleses do Rajá. Foi colocado à nossa disposição um simpático nepalês chamado Tsarong, secretário particular do Rajá que nos serviu de cicerone.

Gangtok é uma bela cidade, com uma aglomeração de casas de pedra branca que lembram muito as construções dos antigas incas. Não é tão formosa como Katmandu, a capital do Nepal, porém tem seus encantos. É uma cidade em estilo muito mais tibetana do que nepalesa. As amplas ruas, pavimentadas de pedras roliças, são sombreadas por velhos pinheiros. A altitude de Gangtok é de cerca de 1.830 metros.

A diferença entre a fresca temperatura do vale dos Himalaias e o cálido clima de Calcutá, de onde viéramos, causou-nos um certo choque. Contudo, tínhamos que ir nos acostumando, pois nos próximos meses iríamos viver numa altitude nunca inferior a 3.350 metros. Sobre as montanhas mais próximas erguiam-se as encostas nevadas dos grandes picos.

A vida em Gangtok está envolta na serena beleza do vale do rio Tista, que o povo chama de "Buraco dos Ventos", pois é uma estreita garganta abrindo-se para o céu. Pequenos campos de arroz pendem dos flancos das montanhas e Gangtok parece suspensa no ar, entre o invisível fundo dos vales e as neves eternas dos montes Kinchijunga. Pelo caminho, encontramos alguns bazares interessantes, exibindo belos trabalhos de artesanato em cobre e marfim. Vimos também inúmeras casas senhoriais, lares prósperos, suntuosos jardins cheios de rosas, apesar do inverno, e as mais belas orquídeas que já vimos. Aliás, dizem que Sikkim é o paraíso das orquídeas e das borboletas, cuja variedade de formas e de cores é maravilhosa.

O povo de Gangtok, chamado "xerpa", é trabalhador, generoso e hospitaleiro. Tem a pele avermelhada, olhos amendoados e um ar alegre. Em geral, tanto os homens como as mulheres usam longas túnicas tibetanas de cores vivas e por cima um manto de seda ou algodão, cor de vinho. Na cabeça, pontudos chapéus de feltro vermelho, que lembram muito o chapéu das bruxas ocidentais da Idade Média. Observamos também, que alguns "xerpas" têm um jeito furtivo lembrando os índios da Bolívia, do Peru, do México e do Brasil, bem como os peles-vermelhas da América do Norte. Comentamos isto com Tsarong - nosso cicerone - que também é "xerpa".

- Dizem nossas tradições - respondeu ele, num inglês perfeito - que nós somos descendentes da raça ameríndia, cuja história é tão milenar que se perdeu na noite dos tempos.

- Mas... não foi do Oriente que surgiram as raças mais antigas do mundo? - indaguei perplexa.

Tsarong teve um breve sorriso e retrucou:

- Nossos livros santos dizem que as Américas surgiram das águas do oceano, muito antes do Oriente. A nossa história parece antiga, mas, na verdade, é tão nova que ainda pode ser lembrada...

- Sim, é verdade - falou o Dr. Vessantára -, foi das Américas que há muitos milênios, saíram os primeiros sábios que se fixaram em outros pontos da terra, levando consigo grandes conhecimentos que serviram de base para fundarem muitas civilizações.

- Nossas lendas - continuou Tsarong - afirmam que uma enorme catástrofe destruiu nosso país de origem, uma grande ilha no oceano, habitada por um povo próspero e notável, do qual alguns grupos puderam alcançar o Egito, a Índia e as Américas, escapando assim do desastre. Contudo, alguns desses grupos, por motivos que ignoro, regrediram espiritualmente e tornaram-se selvagens, com exceção dos astecas, dos incas e dos maias. Daí a semelhança que existe entre estes indígenas e os asiáticos.

Embora bastante admirada, lembrei que a existência de um grande continente ligando a Ásia, a Europa e as Américas e o seu calamitoso desaparecimento são fatos admitidos por muitos cientistas do Ocidente. Súbito, nossos pensamentos foram interrompidos por uma parada que fizemos numa "gompa", isto é, capela de dois andares, em estilo tibetano, contendo em cima, uma biblioteca e, embaixo, um oratório com imagens budistas. Fomos recebidos por um monge e alguns noviços vestindo a túnica cor de vinho dos lamas "gelug-pa" (seita dos chapéus vermelhos). O monge era um homem idoso, pequeno, magro, delicado como um pássaro, de rosto fino e ascético. Seus dedos esguios percorriam as contas de um rosário de coral.

Visitamos a biblioteca que constava de duas amplas salas, de paredes divididas por prateleiras de madeira laqueadas de vermelho vinho. Os livros eram colocados nestes compartimentos envoltos em panos de seda e mantidos entre duas tábuas envernizadas. As páginas eram folhas estreitas de papel de arroz, com quase dois metros de comprimento!

- Uma biblioteca mediana - explicou o monge em inglês - consta de uns 300 livros assim.

- E quantos livros tem esta? - indaguei.

O monge sorriu e disse mansamente:

- Uns dois mil livros.

- E todos sobre literatura religiosa? - perguntou Pierre Julien.

- Sim, Especialmente o Lamaísmo. Entre as obras principais, temos o "kangyur" (coleção de escrituras sagradas) e o "tengyur", que são comentários esotéricos sobre o "kangyur".

Após visitarmos a biblioteca, despedimo-nos e continuamos o passeio pela cidade. Passamos pelo posto do telégrafo, por várias escolas, um hospital, uma estrada de automóveis, o suntuoso palácio do Governador de Sikkim. Sua Alteza o Marajá Tashi Namgial, que é de origem tibetana, como também todos os dirigentes importantes do país. Vimos as casas dos representantes britânicos no Tibete, o mercado, as lojas e finalmente, quando o sol já ia alto, regressamos para almoçar na mansão do Rajá. Era preciso descansar, pois naquela noite iríamos assistir a uma festa típica dos "xerpas" celebrada apenas uma vez por ano na região de Sikkim.

A Festa das Flautas Pastoris

Eram cerca de oito horas da noite, quando nosso grupo chefiado por Tsarong, deixou a mansão do Rajá Dorge e apressou-se em tomar a direção do vale do rio Tista, onde dentro em pouco começaria a Festa das Flautas Pastoris. Nossos cavalos atravessaram um longo caminho, que nos levou ao fundo de uma garganta e, algum tempo depois, vimos um extenso vale iluminado pela luz da lua. À medida que nos aproximávamos, notávamos que o centro do vale estava enfeitado com ricos estandartes de seda, azul, verde, amarelo e vermelho, bordados com faisões, grouse e outros pássaros mitológicos.

Em volta de uma grande fogueira, feita com a perfumada madeira de sândalo, vimos muitos "xerpas" vestindo trajes festivos, acolchoados de pele de cordeiro. As mulheres, pequenas e graciosas estavam profundamente enfeitadas com joias e flores, que apesar do inverno, não faltam em Sikkim.

Enquanto desmontávamos e entregávamos nossos cavalos a um servo que nos acompanhava, ouvimos uma música estranha e melodiosa.

- A festa começou! - exclamou Tsarong.

Aproximamo-nos do povo que se comprimia em volta da fogueira. Nisso, um velho, alto e imponente, vestido com a roupa dos "dokpas" pastores tibetanos, jogou no fogo um punhado de ervas perfumadas. Então o povo começou a cantar acompanhado pelo ritmo dos tambores, que lembravam os atabaques usados nos ritos umbandistas no Brasil.

- É um apelo aos deuses, pedindo sua bênção e proteção para as colheitas - disse Tsarong.

Quando terminaram as invocações, o velho pastor, que soubemos ser o chefe religioso dos "xerpas", desenhou no chão, com um pó branco, uma grande cruz suástica.

- Aquilo nos deixou perplexos. E Pierre Julien indagou:

- O que tem a ver a cruz suástica com a cerimônia desta festa?

- Esta cruz - falou Tsarong - é um dos mais antigos símbolos sagrados do Oriente. Os budistas chineses chamam-na "wan". Nos templos tibetanos é comum encontrarmos este símbolo gravado nos portais ou nas pedras da maioria dos mosteiros.

- Na Índia também podemos ver a cruz suástica sobre a cabeça da serpente Ananta, no Templo de Ouro em Amritsar - falou o Dr. Vessantára. Os brâmanes chamam a suástica de Cruz Jaina.

- Aliás, existem duas suásticas - retrucou Tsarong. Uma é positiva e a outra, negativa. Ambas são sagradas, sendo que a positiva é usada na magia branca e a negativa na magia negra.

- E qual é a diferença entre ambas? - perguntei, sumamente interessada.


Apontando para o desenho que o velho estava traçando no chão, Tsarong disse:

- Repare, aquela é a positiva. Tem os braços dobrados no sentido do movimento dos ponteiros de um relógio. A negativa é ao contrário. A positiva representa o contínuo movimento das forças do Cosmos. Simboliza a rotação da terra nos eixos do mundo, porque as linhas que se cruzam significam o espírito e a matéria perfeitamente equilibrados. Aplicada ao homem, representa o elo entre este e a divindade, emblema de que o Criador está na humanidade e está no Criador, como as gotas d'água no oceano.

Então Hitler usou a suástica positiva? - indagou Pierre surpreso.

Sim, meu amigo - continuou Vessantára -, Hitler era um grande mago negro e sabia o poder da suástica oriental aliado à vibração dos astros. Por esta razão escolheu como símbolo a suástica positiva, apenas inclinou-a 45 graus, tornando-a um símbolo maléfico. Basta que você examine as fotos da guerra e compare-as com a suástica positiva. O movimento dos braços é idêntico. Hitler degradou este poderoso símbolo e pereceu vítima da sua própria maldade.

- Mas como conseguiu tornar a suástica maléfica, apenas com esta inclinação de 45 graus? - perguntei perplexa.

Vessantára esboçou um leve sorriso e respondeu:

- Bem... para explicar isto temos que entrar um pouco no campo da Astrologia. Segundo os entendidos, a cruz positiva, colocada no círculo do Zodíaco sob a influência dos planetas está em bom aspecto com o Sol, doador da vida, positivo, masculino, gerador de força. Se esta mesma cruz for inclinada 45°, tal como fez o déspota alemão, sai da casa do Sol e suas pontas pegam a vibração astrológica de Lilith, a Lua Negra dos feitiços em quadratura ou mau aspecto com o Sol, Marte, Saturno e Vênus.

- Mas o senhor tem certeza de que Hitler usou mesmo a cruz positiva? - perguntei meio incrédula. (1)

- Absoluta - respondeu Vessantára serenamente. Este foi um dos símbolos que mais estudei na Índia, e muito me surpreendeu observar a cruz jaina positiva, como símbolo dos nazistas. Sei que alguns estudiosos e a maioria dos teosofistas, pensam que Hitler usou a cruz suástica negativa, mas estão errados. Nas inúmeras fotos publicadas das revistas da época, podemos constatar isto perfeitamente.

Nisso o velho pastor terminou de desenhar a cruz suástica no chão e fez sinal para um moço alto e robusto, que estava à sua direita. O rapaz aproximou-se. Vestia uma túnica longa, de seda carmesim, sobre umas calças fofas verde jade, que terminavam escondidas sob longas botas de couro vermelho. Na cabeça tinha um barrete de pele de castor. Sentando-se sobre o desenho da cruz, ele cruzou as pernas, pousou as mãos sobre os joelhos, cerrou os olhos e começou a cantar. Sua voz era clara e varonil. Subia através do ar, dividindo brandamente as palavras da canção. Soubemos que era uma canção mística, cuja origem era impossível de saber. Quando terminou de cantar, houve gritos e vivas de todos os presentes. Então, a uma ordem do velho chefe, começou uma farta distribuição de "cheng", cerveja nepalesa feita de milho fermentado, servida em altos cilindros de bambu, chamados "paips". Havia também vinho indiano, montanhas de bolos de mel e muitos outros quitutes estritamente vegetarianos. Nada de carne, galinha ou peixes. O povo avançava em tudo com verdadeira alegria. Muitos até lambuzavam as vestes e riam contentes. Após o banquete começaram as danças. Um grupo de moças e rapazes dançou em volta da grande fogueira. Cascatas de fitas coloridas flutuavam em seus capacetes dourados. Cada um deles trazia na mão uma flauta, que simulavam tocar. A música era exótica e harmoniosa. As moças usavam máscaras de deuses tutelares. Aliás, em quase todas as danças asiáticas, os dançarinos atuam mascarados. Isto porque acreditam que a máscara ajuda-os a elevarem-se da sua consciência do EU, libertarem-se de si mesmos e alcançar o êxtase divino.

Cerca de duas horas da manhã terminou a festa. Apesar do cansaço, nenhum de nós percebeu que o tempo passara tão depressa. E assim regressamos ao palácio do Rajá, levando nos olhos a beleza agreste daquela festa bizarra aos pés dos montes Himalaia.

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Nota:

(1) - Soubemos mais tarde, através das declarações do célebre astrólogo húngaro, Louis De Wolh - que foi chefe do Escritório de Investigações Parapsicológicas de Londres e, logo, Capitão do Exército Britânico, graças à proteção de Lord Halifax - que Hitler se interessava profundamente pelas ciências ocultas e, em especial, pela Astrologia. Apesar de a Astrologia profissional ser proibida pelo governo alemão, sabe-se que Hitler, extra oficialmente e para uso próprio, mantinha um grupo de grandes astrólogos trabalhando para ele. Os demais astrólogos que viviam na Alemanha foram perseguidos e a maioria morta, pois suas previsões astrológicas eram negativas e poderiam vir a prejudicar a propaganda política de Hitler.

Conta Louis De Wolh que "antes da II Grande Guerra morou vários anos em Berlim e lá fez amizade com Maximiliam Bauer, que era o astrólogo favorito de Gustav Stressemamn, Ministro do Exterior da Alemanha. Através de Bauer, Louis De Wolh soube de várias coisas interessantes sobre Hitler. Entre outras que "a sagrada cruz suástica dos antigos orientais foi escolhida por Hitler para símbolo do Nazismo, sob a influência de um lama tibetano do mosteiro de Tulung Tserpung, conhecido como um dos maiores redutos de magos negros no Tibete". Soube também que em 1923, quando Hitler ainda era desconhecido do povo alemão, certa noite ao sair da famosa cervejaria de Munique, onde se reunia com amigos para falar sobre política, Hitler encontrou-se com Aub, um velho mago muito conhecido em Munique como vidente. Em companhia de Aub estava um lama tibetano vestindo a túnica vermelha, típica da sua seita. Aub conversou com Hitler por algum tempo e logo este o seguiu à sua residência. Desde então, consta que Hitler foi iniciado nas ciências ocultas por Aub e o misterioso lama tibetano.

Na primavera de 1940, Louis De Wolh publicou em Londres um estudo sobre o horóscopo de Hitler, no qual diz o seguinte: "A morte de Hitler será de natureza netuniana, ou seja, uma morte por envenenamento ou prostração nervosa, ou quiçá se trate de uma morte misteriosa que nunca será esclarecida.

Mais tarde, num de seus livros intitulado "Astros, Guerra e Paz", Louis De Wolh declara:

"Após o trágico desaparecimento de Hitler - previsto por mim em 1940 - foi constatada a presença inexplicável de alguns lamas tibetanos da seita dos chapéus vermelhos nas cercanias de Berghof, o palácio montanhês de Hitler, na costa de Obersalzberg. Estes lamas foram presos, mas apesar de toda a vigilância das autoridades policiais, desapareceram misteriosamente da prisão e jamais foram encontrados".

É possível que este fato venha ao encontro do astrólogo alemão Maximilian Bauer de que Hitler, realmente, foi iniciado nas ciências ocultas por um lama tibetano do mosteiro de Tulung Tserpung, situado perto da cidade de Lhassa.


O Buda Vivo de Sikkim e suas Declarações Proféticas

Uma semana após nossa chegada a Gangtok, enquanto esperávamos que o Rajá obtivesse do governo tibetano as nossas "Iam-yíg" ou autorização de trânsito, soubemos que, numa montanha ali perto, próximo ao vale do rio Tista, pouco além do Mosteiro de Podang, a uns 15 km de Gangtok, morava um Buda Vivo.

Este Buda Vivo, ou "corpo fantasma", é uma das mais curiosas facetas do lamaísmo. Pertence a uma aristocracia eclesiástica que surgiu no Tibete em 1650.

Conta-se que naquela época, o quinto grande Lama da seita dos "chapéus vermelhos", cujo nome era Lobzang Gyatso, tinha sido nomeado soberano do Tibete, por um príncipe mongol e reconhecido como tal pelo Imperador da China. Contudo, aquelas honrarias não lhe bastavam e o ambicioso novo rei resolveu fazer-se passar como sendo uma emanação fantasma do deus Tchenrezi. Decidiu também que seu amigo, o grande Lama do mosteiro de Tashilumpo, era uma emanação fantasma de Eupamed - o Buda místico de quem, segundo a tradição, Tcherenzi é filho espiritual.

Este exemplo do Lama-Rei fomentou a criação dos Budas vivos que os tibetanos chamam de "tulku". Em seguida, todos os mosteiros importantes consideraram uma questão de honra, terem como chefe a reencarnação de algum personagem célebre do Lamaísmo.

Quiçá este breve resumo sobre a origem das duas dinastias mais ilustres dos "tulkus" - a do Dalai Lama (reencarnação de Therenzi) e a do Trachi-Lama (reencarnação de Eupamed), seja suficiente para que os leitores compreendam que não se trata de reencarnação de Gautama, o Buda, que nada tem a ver com estas criações lamaístas.

No Tibete, o número destes Budas Vivos é bastante numeroso. Contudo, a maioria deles é de magos ou feiticeiros, que desempenham funções de oráculos oficiais.

Embora o budismo original negue a existência de uma alma pessoal, permanente, que transmigra de uma existência a outra, a maioria dos budistas voltou a adotar a crença hindu da reencarnação.

Consta que existem também mulheres "tulkus". De modo geral elas são abadessas de mosteiros de homens, ou então ermitãs. Muitas vezes os ''tulkus'' lembram-se de suas vidas anteriores e vários são os exemplos disso que se conhece na Índia e no Tibete. Várias são as antigas lendas, cujos heróis determinam a natureza do seu renascimento, e a carreira de um futuro "avatar" (reencarnação). Geralmente predizem em seu leito de morte, onde devem renascer e dão detalhes sobre os futuros pais, o lugar onde fica a casa, etc.

Dois anos após a morte de um Buda Vivo, o chefe do mosteiro onde ele morreu começa a busca da sua reencarnação. Algumas vezes encontram logo uma criança com as condições prescritas, e esta se submete, entre outras, a muitas provas de reconhecimento.

O fato de que ali, em Gangtok, tão perto de nós, vivia um destes Budas Vivos, sobre quem se contavam muitas histórias misteriosas, deixou-nos curiosos em conhecê-lo. Dizia-se que ele era um velho de 102 anos, mas que por um processo mágico oculto, vinha conseguindo retardar a velhice. Sua pele era fresca e quase sem rugas, os movimentos ágeis e os dentes claros e perfeitos.

Comunicamos ao Rajá nosso desejo de ir conhecer o Buda Vivo de Sikkim.

- Impossível! - disse ele - nenhuma mulher pode entrar no mosteiro do Buda Mercúrio...

- Mas, por quê? - indaguei.

- É contra a ordem dos Lamas. Este mosteiro é cheio de lendas e mistérios. Dizem que a setecentos e setenta e sete passos do mosteiro havia, outrora, uma enorme estátua de Buda, toda em bronze maciço, que nem mesmo cem homens podiam carregar. Certa noite, esta estátua desapareceu misteriosamente e os Lamas tiveram muito trabalho em descobrir a razão deste desaparecimento.

- E qual foi? - indaguei.

- Não se sabe ao certo. Os Lamas deste mosteiro são muito discretos. Conta-se que a estátua foi levada pelos gênios da quarta dimensão, para algum lugar inacessível aos olhos profanos...

Aquelas palavras avivaram minha curiosidade e insisti com o Rajá, para que intercedesse junto aos lamas, para que me permitissem visitá-los. O Rajá prometeu fazer o possível, mas não me deu muitas esperanças. Mandou Tsarong com muitos presentes, solicitar licença para visitarmos o mosteiro. A resposta foi negativa. Não me conformei e após muitas idas e vindas, vimos nosso desejo satisfeito. O venerável Lama, abrindo uma exceção sem precedentes, concordara em receber-nos. Impunha apenas uma condição, que eu vestisse o hábito cinzento dos noviços e velasse meu rosto com o longo capuz do hábito. A permissão era só para mim e o Dr. Vessantára. Mahima e Pierre Julien não poderiam nos acompanhar.

No dia marcado, partimos em direção às montanhas, liderados por Tsarong. Fomos a pé, conforme pediram. A ascensão foi lenta e seguia aclives sinuosos. Respirávamos com prazer o ar puro da manhã, impregnado com o aroma dos pinheiros. Fazia muito frio. Nenhum pássaro cruzou o belo céu azul. Após cerca de três quilômetros, costeando o vale, a subida tornou-se abrupta. O caminho era por um corte oblíquo na rocha, cujo cimo a bruma ocultava. Logo se aplainou o solo e entramos numa atmosfera clara e cheia de sol. Passo a passo, fomos por um atalho estreito e íngreme, no pendor da montanha. Tivemos que seguir um atrás do outro, reparando atentamente no chão, para não pisar em falso. De um lado, havia o flanco inacessível da serra; do outro o abismo. O cansaço ia afrouxando nossos passos. Finalmente, vimos uma colina verde e deserta. Em frente, a pouca distância, erguia-se o Templo do Buda Mercúrio também chamado Colégio dos Santos Magos.

Um grupo de pavilhões coloridos, de tetos recurvos, pendurava-se à encosta da montanha, como uma flor encravada nas pedras. A região era cheia de escarpas e coberta de florestas pitorescas. Devagar, fomos nos aproximando. A emoção era tanta que mal podíamos respirar. Íamos ver um dos grandes chefes espirituais da Ásia.

Entramos através do grande portão de ferro que dá acesso ao templo. Grupos de monges, lentos e solenes nas suas longas túnicas de algodão branco ou amarelo, andavam pelas veredas que conduziam ao interior do parque. O grande gongo de bronze, semi-oculta entre as traves, acabava de ser tangido, convocando a todos para a oração da manhã. Puxamos bem o capuz do hábito e entramos no amplo hall, pavimentado de mármore rosa. Vimos uma série de nichos com objetos sagrados. As paredes laterais eram cobertas com pinturas feitas sobre seda, representando a vida de santos do Lamaísmo. A um lado, um grande altar dourado sujeitava uma enorme estátua, também dourada, representando Gautama, Buda, ainda adolescente. Tinha a face magra e tranquila, o olhar semicerrado de quem não olha para o mundo dos mortais. Refletia-se em seu todo uma expressão de misteriosa piedade, sonho e sabedoria.

Um dos noviços ou "trapas" acompanhou-nos até a grande capela, onde, entre velas coloridas, candelabros de ouro e incensórios de jade, vimos um fato singular.

Suspenso no ar e sem nenhum apoio, estava um báculo, isto é, um pequeno bastão dourado, que segundo a lenda, regula os atos da comunidade.

Soubemos que aquele bastão milagroso pertencera ao santo Tsong Kapa, que foi o reformador da religião budista no Tibete. Pensamos que se tratasse de algum truque muito bem dissimulado pelos lamas, pois nossa mente, por mais que raciocinasse, não encontrava nenhuma razão lógica para aquele fenômeno. Percebendo nossa incredulidade, o Dr. Vessantára disse:

- Soube que este bastão mágico está neste mosteiro há muitos séculos. Nunca ninguém soube explicar a razão deste prodígio. Só os lamas conhecem este segredo, mas não o revelam aos profanos. O sábio Nicolas Notovich, que há tempos esteve no Tibete chefiando uma missão de cientistas russos, examinou tudo detidamente e não encontrou nenhuma fraude, nem razão lógica para explicar o fenômeno. Este sábio russo foi quem encontrou na cidade de Ladak, a cela antiquíssima do "Ermitão de Issa", que os Lamas dizem ter sido Jesus Cristo.

Perplexos e fascinados, ficamos por algum tempo contemplando o prodígio. Finalmente, tocando de leve em nosso braço direito, o noviço fez sinal para que o seguíssemos. Continuamos andando até alcançar um longo corredor penumbroso. Apenas percebíamos a fraca iluminação de algumas tochas. Senti um vago temor e meu sangue pulsou mais rápido nas minhas veias. Havia muitos nichos cavados nas paredes de pedra do corredor. Vimos nestes nichos vultos imóveis. Pensamos que fossem estátuas, mas em voz baixa, o noviço falou:

- Estes são monges que voluntariamente se deixaram mumificar em vida...

- Mas como? - perguntamos, através de Tsarong. A resposta veio clara e precisa:

- Durante três dias e três noites cozinhamos sementes tenras de linho misturadas com fava branca. Depois, ambas são trituradas num pilão. A parte seca volta duas vezes ao fogo e ao pilão e, por fim, fica exposta ao sol, até se transformar numa farinha leve Então após um jejum rigoroso o candidato à mumificação come grande quantidade desta farinha. Durante três meses ficará alimentado por pequenas doses de que nós lhe damos, juntamente com pequenas porções da farinha. O monge deve conservar a mente fixa no Logos Solar: Com este regime ressecam os intestinos e o fígado. Tempos depois com a pele inteiramente endurecida, o candidato parece mesmo uma múmia. Somente a respiração, fraquíssima, continuará, mas... por pouco tempo...

Foi horrível para nós esta revelação e, quando saímos do corredor lúgubre, para um amplo pátio arborizado, respirei aliviada. E ali, à sombra de um pinheiro milenar, vimos o Buda Vivo de Sikkim. Estava sentado com as pernas cruzadas, em cima de uma esteira de bambu. Era difícil precisar-lhe a idade. As feições miúdas, imprecisas, davam-lhe um aspecto indefinido. Vestia uma ampla túnica amarela, um casaco forrado de peles de cordeiro e um barrete também de peles. No queixo tinha uma barbicha rala e muito branca. Os olhos eram pequenos e vivos. A pele quase sem rugas. As mãos finas e aristocráticas. Sua fisionomia não me parecia desconhecida embora não pudesse encontrar sua imagem na minha memória.

Aproximamo-nos depositando aos seus pés as echarpes de seda branca, que os tibetanos chamam de "ka-ta", ou echarpes da felicidade, que Tsarong nos fizera trazer.

- Sua Santidade foi muito bondoso em receber-nos - disse eu em inglês.

O Buda Vivo virou-se para nosso intérprete Tsarong e disse algo em tibetano. Adivinho corretamente o que ele quis dizer.

- O venerável Pai da Alma Diamante entende quando lhe falam em inglês, mas teme que não lhe corresponda o seu, por isto prefere que eu traduza as palavras - falou Tsarong.

Olhando-me fixamente, o Buda Vivo falou:

- "Jetsuma (reverenda dama), é contrário à nossa regra e à nossa ordem recebermos aqui uma mulher. Mas... os atos da sua vida anterior conduziram-na ao meu encontro. Seja bem-vinda!"

A voz era fraquinha e grave, muito agradável de ser ouvida. Eu continuava a pensar intrigada, onde já tinha visto aquele semblante. Como que respondendo aos meus pensamentos, ele falou:

- Tens razão, pequenina irmã, nós não somos desconhecidos.

Por várias vezes estive ao teu lado, embora não soubesses da minha presença etérea. Já dirigi muitas correntes de ideias brotadas do teu cérebro. Tu não te lembras porque o véu de Maya (ilusão) obscurece tua visão interna...

Minhas mãos tremeram de emoção. Que pensar de tudo aquilo?

Recordei as palavras de Gautama, o Buda: "Nada aceites que não seja razoável; nada consideres como contrário à razão, sem um exame conveniente".

Percebendo minha perturbação, o venerável passou a conversar com o Dr. Vessantára, em sânscrito. O mais estranho era que mesmo sem compreender o sânscrito, eu entendia perfeitamente tudo o que ambos diziam. Era como se uma onda telepática transmitisse o conhecimento ao meu cérebro. Creio que esta foi uma das mais belas provas intuitivas que tive no Tibete.

Falaram sobre religião, ritos e lendas do povo tibetano.

- É preciso ser erudito para se compreender os ensinamentos budistas? - indaguei, finalmente.

- O conhecimento da verdade - respondeu o venerável - é algo que não se pode ler nos livros. Depende de nossas próprias experiências. Basta dizer que Shen Sien, o sexto Patriarca do budismo, descascava arroz para viver. Um dia, a força do seu Deus Interno despertou e ele tornou-se um sábio de repente...

Em seguida a conversa passou a temas mais simples. Muito me surpreendeu saber que o Buda Vivo lê regularmente jornais ingleses, e está bem informado dos problemas atuais do mundo, fora do seu círculo.

Recordo a crença de Tsarong que o venerável possui uma visão profética. Minha curiosidade me induz a pedir-lhe opinião sobre o futuro do mundo. Antes que eu pudesse formular a pergunta, veio a resposta:

- Só o entendimento espiritual entre as nações conduzirá à verdadeira Paz. Creio que o remédio para os problemas do mundo é viver e ajudar a viver.

Fitou-nos com um olhar profundo e prosseguiu:

- Os homens são agentes do Carma (lei de causa e efeito), e nós como agentes dos Mestres Ascensionados, não podemos anular as dívidas que os homens e as nações contraíram com seus atos.

Está previsto que em cada dois mil anos a terra entra em contato com um novo raio cósmico que ajuda a sua evolução. Foi confiada a um grande Mestre Ascensionado, a custódia do já iniciado ciclo de dois mil anos da Era da Liberdade. Este maravilhoso Ser trará ao mundo o Fogo da Liberdade e oferecerá ao mundo a oportunidade da queima total do Carma. Futuramente, um grupo de estudiosos no Ocidente, a partir do terceiro mês do ano de 1952, divulgarão os ensinamentos deste grande Senhor da Liberdade para a Terra.

Há uma pausa que dura cerca de um minuto. O venerável acaricia a barbicha com os dedos.

Peço permissão para fazer-lhe algumas perguntas pessoais.

- Qual é a sua idade, venerável Pai da Alma Diamante?

A resposta chegou rapidamente:

- A idade da forma não é a idade da alma. Tu e eu já vivemos na terra muitas vezes...

Curiosa, procurei fazê-lo prosseguir:

- Se vivemos anteriormente e vos lembrais, por que não sucede o mesmo comigo?

- Primeiramente a memória cerebral, que é variável e incerta, só registra as experiências desta vida; as vidas passadas têm seus registros na alma. O estudo e a meditação despertam a consciência da alma, e com essa consciência, todas as recordações do passado nela conservadas.

Houve outra pausa. Um noviço aproximou-se e acendeu uma vareta de incenso de rosas. O Buda Vivo observou o fumo azul que se elevava em espirais e permaneceu em silêncio.

Recordei que desde os tempos mais remotos, os orientais associam os odores agradáveis com a essência divina dos deuses. Chegavam mesmo a pensar que a alma tinha uma fragrância própria, muito superior a todos os perfumes que o homem conhecia. Nos templos sagrados, ainda hoje os herboristas misturam poções secretas e preparam raros incensos, os quais acreditam-se que são semelhantes à divina fragrância da alma. É crença geral que a inalação da fumaça perfumada eleva a alma a grandes alturas, ajuda a produzir a harmonia dos sentidos, tranquiliza e acalma o corpo e a mente.

Sentindo que nossa entrevista terminara realmente, levantamo-nos do chão, onde estávamos sentados sobre grossos tapetes. O Buda Vivo ergueu a mão direita em sinal de bênção. Depois, pegando um dos manuscritos que estavam sobre uma mesinha baixa, ao seu lado, ofereceu-nos como lembrança. E dirigindo-se a mim, falou:

- Encontrarás ainda outros Mestres mais esclarecidos do que eu que te revelarão muitos segredos. Guarda-os com cuidado. Quando chegar a época. terás a intuição para divulgá-los. Cumpre o teu dever no Ocidente e que nenhuma obscuridade te impeça de ver a Luz Divina ou te desvie do verdadeiro caminho iniciático!

Entardecia quando deixamos o Templo do Buda Vivo de Sikkim. Um vento frio, prenunciando tempestade, agitava nossas vestes. Sentíamo-nos à mercê de alguma força impenetrável e extraordinária. À medida que nos afastávamos do templo, perguntava a mim mesma se tudo o que me vinha ao cérebro fazia parte de uma visão desperta ou de um sonho. O rolo de seda em minha mão, contendo uma oração budista, convenceu-me daquela maravilhosa realidade.

Chegamos ao palácio do Rajá Dorge num estado de grande agitação e excitamento. Naquela noite, após o jantar, a conversa girou sobre nossa visita ao Buda Vivo e suas declarações proféticas. Depois, falamos sabre a reencarnação.

- Mesmo no Ocidente - disse Vessantára - homens famosos como Henry Ford acreditam na reencarnação. Algum tempo antes de falecer, Ford foi entrevistado pelo repórter americano Franzier Hunt, e declarou abertamente sua crença na reencarnação.

- Cada vida que vivemos - declarou Ford ao jornalista - aumenta o total de nossas experiências. Tudo o que se encontra na terra foi posto para o nosso bem, para obtermos experiências que devem ser guardadas para um fim futuro. Não existe uma partícula do homem, um pensamento, uma experiência, uma gota que não subsista. A vida é eterna; portanto, não existe morte.

Isto é ir mais longe do que ensina nossa religião cristã - disse Frazier.

- Pode ser, mas é nisso que eu creio. E creio, como se cria, em épocas muita anteriores, em tempos bem remotos, nos quais se sabia algo que já perdemos; algo do misterioso enigma da vida. E estou completamente certo de tudo isso... Creio que o que chamamos religião foi há séculos uma ciência exata, enunciada em conceitos baseadas em fatos e conhecimentos. As coisas que resultam ser agora mistérios sem solução, tais como de onde viemos antes de nascer e para onde vamos após a morte, eram conhecidas por todo mundo. Sabia-se tudo concernente à existência. Algum dia, nós seremos também bastante sagazes para ver e compreender a vida toda do Universo; o que está se passando em outros planetas e muitas outras coisas neste estilo".

Recordei então o que lera certa vez numa publicação mística:

"A reencarnação é a verdadeira e a única explicação lógica para inúmeras injustiças aparentes, o que se verifica quando por exemplo se vê tanto destino pesado em certas pessoas boas e valiosas enquanto outras - as que chamamos de "más" gozam de um viver feliz! Podemos estar certos, não há descuido; a não ser que, cada um encontre, novamente, o efeito das antigas causas, que em qualquer tempo, no passado, haja semeado, - mas das quais não possui mais nenhuma lembrança.

Assim, pois, depende de como cada um irá reagir no decorrer dos fatos e circunstâncias e desta forma será determinado como cada um viverá no futuro. Se alguém pode neutralizar seus erros, se ele próprio quer prestar um serviço a outrem e com isso dissolver o mal, então estará livre da culpa. Mas se ele não consegue redimir-se, a vida destas duas pessoas será cada vez mais embaraçosa, até que em alguma encarnação futura isto seja alcançado.

A maioria das pessoas são levadas a aproximarem-se com o único intuito de dissolver "culpas" esquecidas do passado. Quando entre algumas pessoas reina a atração do amor e da harmonia é certo que, em outra época, já havia uma união harmoniosa e juntos trabalharam, podendo expandir estas qualidades no mundo aos que tanto necessitam delas. Quando surgir um sentimento relutante ao encontrarmos alguém, quando percebermos que devemos estar em guarda, isto é recordação de sentimentos desagradáveis e desarmônicos de ligação no passado.

Deus é um Deus de amor e - Um Bom Deus - nunca iria prover seus filhos - uma metade com amor, beleza, alegria, abundância e dotada de todo bem - e a outra metade carregada com doenças e coisas impuras da vida. Bons pais não fazem diferença entre seus filhos, e Deus não o faria, absolutamente.

Se, finalmente, o homem percebe que ele é a Causa de toda desgraça e toda limitação em seu mundo, e se ele, sincera e honestamente, reconhece e deseja reparar todo este mal, ser-lhe-á dado integral auxílio. Porém, até que ele consiga atingir este ponto, permanecerá, geralmente blasfemando contra Deus e contra o destino ou resignando-se na impressão de que esta é a vontade de Deus - que naturalmente, não é".

Tudo isto nos veio à mente enquanto Vessantára comentava o caso da menina Shanti Devi, de nove anos de idade, que desde que começou a falar, afirma ser a reencarnação da falecida esposa de um negociante de tecidos, de nome Lugdi, residente na cidade de Mutra, a uns duzentos quilômetros de Nova Délhi, lugar onde nasceu e vive a menina.

- A alma é eterna e incriada - falou Mahima - Passa de uma existência para outra, de um país para outro. Não há dúvida de que o caso de Shanti Devi é um dos mais curiosos casos de reencarnação que já houve na Índia. Lástima que muita gente duvide disso.

- Quando chegar o momento - disse o Rajá - todos compreenderão que a reencarnação é uma grande verdade. Mas creio que o mundo ainda não está preparado para aceitar isto...


A Festa Sagrada de Wesak

Na manhã seguinte, após tomar o chá com bolos de gengibre que uma das criadas nos levou no quarto, saímos para o jardim ao encontro de nossos amigos. Estavam sentados num quiosque, no centro do grande jardim cheio de flores, apesar do inverno. Conversavam animadamente.

- Foi bom teres vindo - disse Mahima -, pois estávamos falando sobre a sagrada festa de Wesak.

- Sim, pois, hoje à noite o povo do Nepal vai festejar o Festival de Wesak, que é um dos mais importantes de toda a Ásia falou o Rajá.

Era a primeira vez que ouvíamos falar nesta festa e o seu nome estranho despertou em nós uma viva curiosidade.

- O que significa esta festa? - indagamos.

Foi o Rajá quem respondeu:

- Representa uma tradição multimilenar do Oriente, que todos os anos, na Lua Cheia de maio, é celebrada aqui no Nepal e também em alguns lugares da Índia e do Ceilão. Na grande hora da Lua Cheia, Maitreya - o Buda da Compaixão - derrama suas bênçãos sobre o mundo.

- Aliás, estas bênçãos - disse o Dr. Vessantára - são maravilhosamente excepcionais, porque devido a sua alta categoria nos planos espirituais, nosso senhor Buda tem amplo acesso aos planos da natureza que estão muito longe do nosso alcance. Portanto, ele pode transmutar e transferir ao nosso mundo, a divina energia dos mundos superiores. Sem o auxílio do Buda, jamais estas energias poderiam chegar até nós.

- E por que não? - indaguei, curiosa.

- Vessantára olhou para o Rajá e os dois sorriram, e após uma breve pausa o Rajá falou:

- Porque as vibrações do nosso bem-amado Buda são tão formidáveis e tão incrivelmente rápidas, que seria-nos impossível percebê-las. Mas, no plenilúnio de maio, suas bênçãos se difundem pelo mundo inteiro, levando harmonia e paz inefável a todos os que estão preparados, para receber os divinos dons.

Estas palavras do Rajá calaram fundo em nossa alma, mas ainda assim, não tínhamos percebido o sentido oculto da festa de Wesak. E continuamos perguntando:

- Por que razão esta bênção maravilhosa só é dada no plenilúnio de maio?

- Porque é no mês de maio - disse o Rajá - que no calendário da Índia, Nepal e Ceilão é chamado Wesak, ou Festa da Lua Cheia de Maio. Nesta época festejamos os acontecimentos mais importantes da vida de Buda, o Iluminado. Contudo, a aparição que surge na Festa da Lua Cheia não é a de Sidarta Gautama, o Buda, mas sim de uma de suas emanações divinas conhecida como Buda Maitreya, ou Buda do futuro.

- E todos podem ver esta divina aparição da sombra do Buda? - indaguei perplexa.

- Nem todos... - retrucou o rajá - somente aqueles que estão preparados espiritualmente e têm aberto a sua 3a. visão ou terceiro olho espiritual. Consta que nesse dia sagrado, muita gente vaga inutilmente de um lado para outro nas montanhas, sem encontrar o lugar onde é celebrada a Festa da Lua Cheia. É como se o "véu de Maya", a grande ilusão, ocultasse este lugar dos olhos curiosos.

Diante disto ficamos preocupados. Acaso seríamos dignos de ir a esta festa e ver a sombra do Buda?

Como que adivinhando meus pensamentos o rajá falou: - Recebi ordens dos Mestres da Fraternidade Branca do Oriente para levá-las à festa de Wesak.

- Mas. .. quem são estes Mestres da Fraternidade Branca do Oriente, indaguei curiosa.

- São Seres Ascensionados, livres de toda imperfeição, que vivem no plano espiritual e se comunicam conosco através de seus discípulos, muitos dos quais vivem aqui no Nepal.

Nossa alegria foi tanta que mal pudemos balbuciar um agradecimento.

Naquela mesma tarde, às três horas, nosso grupo liderado pelo rajá e pelo Lama Kazi, deixou o palácio no centro de Gangtok e partiu rumo ao vale do rio Tista. Os cavalos atravessaram um longo caminho que nos levou ao fundo de uma garganta, depois a vales férteis onde homens e mulheres pastoreavam cabras.

Levamos cerca de uma hora subindo, galgando altura gradativamente. Afinal alcançamos uma ravina e mais adiante um platô, que parecia situar-se a meio caminho entre a base e o cimo da montanha. Ali, desmontamos, entregamos nossos cavalos a um servo que nos acompanhava e continuamos andando a pé. Passo a passo, guiados pelo lama Kazi, fomos por um estreito vale que se aprofundava cada vez mais na floresta. Para além do vale, vimos uma tortuosa região cheia de íngremes colinas. A estrada foi se encaracolando pela extremidade norte, e em seguida, cortando através de uma abertura na montanha, chegamos a uma colina verde e deserta.

Um pouco mais adiante era a planície à qual chegamos por um caminho árido e pedregoso. Um regato corria manso na parte ocidental da planície. Numa clareira aberta entre enormes carvalhos, vimos um altar feito de pedra, onde se espalhavam muitas guirlandas de flores. Um grupo de ascetas lá estava sentado no chão, meditando. Eram todos bem idosos. Os cabelos e as barbas longos e brancos. Usavam apenas uma tanga de algodão amarelo, e seus corpos eram magros e bronzeados.

- Aqueles homens são os "naljorpas" tibetanos - murmurou o lama Kazi.

- Naljorpas - repetimos intrigados.

- Sim, são os monges peregrinos que na véspera do plenilúnio descem de suas ermidas, e vêm aqui prestar sua homenagem ao bem amado Buda.

Mais adiante, vimos alguns homens armando uma fogueira com madeira de sândalo.

- Breve virá a noite - disse o Rajá - e eles estão preparando a fogueira do ritual do Wesak. Dizem que quando participamos de um ritual, ajudamos a gerar uma força redentora para toda humanidade.

- Como assim? - indagamos.

- No ritual, os pensamentos e aspirações de todos os participantes, unindo-se às forças da Natureza e às energias Divinas, criam um poderoso vórtice para o Bem, um pensamento absoluto, que atrai para a terra o poder e a bondade de Deus.

Escolhemos um lugar perto do grupo dos ascetas e nos sentamos no chão, silenciosamente, à espera da grande cerimônia ritualística. Os peregrinos foram chegando em religioso silêncio. Sentavam-se ordenadamente no chão, tendo o cuidado de deixar um amplo espaço livre diante do altar. Todos vestiam longas túnicas amarelo-laranja - a cor dos discípulos de Gautama, o Buda.

O Rajá tinha providenciado para que nós também vestíssemos túnicas de algodão amarelo, por cima das pesadas roupas de lã, pois o frio era intenso. Também tínhamos nos purificado de acordo com a tradição, tomando um banho com pétalas de rosas brancas, e defumado nosso corpo e nossas roupas com incenso e benjoim.

Observamos em silêncio os rostos graves e serenos dos ascetas que estavam perto de nós. De repente, um deles se levantou. Era um velho alto e esguio e toda a sua pessoa emanava um grande magnetismo. Uma menina de uns sete anos aproximou-se e entregou-lhe uma caixinha de laca vermelha. O velho abriu-a e foi tirando pós coloridos verde e alaranjado. Com estes pós, traçou um grande círculo de uns três metros de diâmetro. No meio do círculo vieram se sentar três velhos ascetas. Seus rostos tinham uma expressão tranquila e hierática. Uma pequena orquestra, composta de flautas e gongos, começou a tocar uma música muito suave. Sob o céu estrelado, sentados no chão com as pernas cruzadas, na postura do lótus, os ascetas balançavam o corpo ao ritmo de um cântico suave, elevando suas preces ao Cosmos, enquanto perto deles subia a espiral prateada do incenso. No Oriente, nenhuma cerimônia mística está completa sem a queima de resinas aromáticas. O costume de queimar incenso não é uma fantástica superstição nem um rito extravagante, mas sim um símbolo da harmonia do homem com a grande consciência cósmica, por meio da prece e da meditação. Ademais, o uso do incenso é inteiramente científico. Todos os que estudam ocultismo sabem que não há matéria morta, mas todos os seres e todas as coisas da Natureza possuem e irradiam suas vibrações ou combinações de vibrações. Cada elemento químico tem, portanto, suas influências peculiares, que são úteis em determinado sentido e inúteis e até mesmo nocivas, em outros. Quando misturamos diferentes resinas, como o incenso, o benjoim e a mirra, elas ao serem queimadas estimulam as emoções puras e nobres, purificando aquela parte da natureza humana chamada corpo emocional ou astral. Seu efeito é semelhante ao de um desinfetante, que ao espalhar-se pelo ar, destrói os germes patogênicos, embora o incenso e outras resinas aromáticas atuem nos planos superiores da matéria sutil.

À medida que o cântico dos ascetas se elevava, numa suave cadência, um lama vestido com um rico manto amarelo, que segundo soube tinha vindo de um mosteiro da cidade santa de Lhassa, estendeu as mãos finas e magras sobre o braseiro perfumado.

- O que será que ele está fazendo? - perguntei.

E o rajá respondeu:

- Magnetizando o incenso para aumentar seu poder, estimulando nosso corpo fluídico, a fim de percebermos melhor as emoções que nos vêm dos planos superiores.

Cerca de uma hora antes do plenilúnio houve um estranho fenômeno, que ainda hoje custo a acreditar. Vimos, nitidamente, formar-se perto dos três ascetas que estavam sentados no meio do círculo colorido, uma nuvem cinzenta. A nuvem condensou-se aos poucos até formar a figura de um homem jovem ainda, de pele morena, traços finos e olhar brilhante. Vestia uma túnica branca flutuante e envolvia sua cabeça um turbante de seda azul-claro.

- Que maravilha! Quem é ele? - indaguei perplexa.

- É a forma fluídica do Mestre ascensionado El Morya, um dos grandes Mestres da Fraternidade Branca do Oriente - explicou o lama Kazi. Ele é o Senhor do primeiro raio cósmico que representa a força, o poder e a proteção da vontade divina; através dele é manifestada no Universo esta vontade. Estadistas, Guias e Orientadores da humanidade, homens com grande tendência para a realização de um ideal construtivo, possuem em seus corpos etéricos uma larga faixa de cor azul, pois estão em harmonia com o Mestre El Morya.

- Ah! exclamei interessada. Fale mais sobre ele!

E Kazi continuou falando:

- Consta que ele viveu num continente antiquíssimo, que há milênios desapareceu da face da terra. Seu santuário fica ao pé da montanha do Himalaia, na cidade de Darjeeling. El Morya é o grande mestre que tem responsabilidade sobre a orientação e o desenvolvimento da Ásia e seu povo. Ao mesmo tempo, pertence-lhe o controle dos governos de todo o mundo. Dizem que no tempo de Jesus, foi ele Melchior, um dos três reis sábios do Oriente. Depois encarnou como o lendário rei Artur, da sagrada Taça do Santo Graal e sua última encarnação foi como o poeta irlandês Thomas More. Junto com ele, trabalham também no primeiro raio cósmico azul, o Arcanjo Miguel e o poderoso Elohim Hércules.

- El Morya! - repeti comovida, enquanto olhava a maravilhosa materialização de sua forma fluídica.

Era como se o nome do mestre pusesse uma nota de paz na minha mente e na minha alma. Seus grandes olhos azuis tinham um brilho tão intenso, que penetravam o mais íntimo do meu ser.

Ao lado dele, vimos aparecer uma luminosidade branca, com cerca de meio metro de altura e uns vinte centímetros de largura. Era a primeira vez que assistíamos a um fenômeno de materialização e ficamos incrédulos e ao mesmo tempo, alegres e maravilhados.

A luminosidade branca desapareceu rapidamente e logo surgiu diante de nós a figura magnífica de um velho de rosto fino e aristocrático, longas vestes brancas e cabelos grisalhos, repartidos ao meio e caindo-lhe pelos ombros em sedosas ondas. Ele movimentou os braços num gesto de bênção e andou até o centro do círculo onde estavam os três ascetas. Tinha uma aparência normal, como teria qualquer um de nós vestidos de branco.

Cinco materializações sucederam-se a esta, num curto espaço de tempo. Todos tinham uma linda formação de ectoplasma, arredondada de uma viva fosforescência meio azulada, dando a impressão do crepitar de uma chama.

Isto para nós era espantoso! Mas para todos que estavam ali não parecia nada anormal. Eram fatos que confundiam nossa inteligência, pois embora já tivéssemos ouvido falar sobre fenômenos de materialização, ainda não tínhamos visto nenhum. Muitas das investigações de cientistas como Charles Richet, professor da Universidade de Paris, Enrico Morseli, famoso psiquiatra italiano, Sir Oliver Lodge e numerosos outros nomes importantes, já eram do nosso conhecimento. Mas, presenciar tantas materializações assim, numa noite de lua clara, em plena mata oriental, era algo deslumbrante e quase inacreditável!

Observamos que os seres materializados conversavam naturalmente com todos e o mais curioso é que falavam no idioma tibetano ou páli, e cada um de nós entendíamos suas palavras como se fossem ditas em nossa própria língua, num misterioso fenômeno telepático...

A um sinal do Mestre Morya, trouxeram uma tigela de ouro cheia de água de uma nascente próxima. O mestre segurou-a delicadamente entre as mãos e colocou-a sobre o altar, entre as grinaldas de flores.

Começaram então os cânticos mais sagrados. Uma doce brisa melódica chegou aos meus ouvidos. A isto seguiu-se uma explosão de música de uma beleza perfeita, mas diferente de qualquer outra que eu já ouvira. Tinha sons de uma delicadeza e ternura tão penetrantes, impossível de descrever. Eu escutava perplexa e deslumbrada.

Ao meu lado ouvi a voz de Kazi dizendo baixinho:

- Apenas os fragmentos do grandioso cântico dos Mestres é que chegam aos seus ouvidos, pequenina irmã!

Sentia-me comovida, incapaz de falar. Um doce espanto grudava os meus lábios. Gostaria de perguntar muitas coisas ao lama Kazi, mas era como se eu estivesse com a mente em branco.

Kazi percebeu a minha emoção e continuou dizendo:

- Dentro em pouco se materializará aqui, toda a grande assembleia dos Mestres da Fraternidade Branca do Oriente. Esta Fraternidade foi fundada há doze mil anos, no princípio da Idade Negra ou kaliyuga, que terminou em 1918. Assim cumpriu-se um ciclo evolutivo e começou outro também de doze mil anos. O regente desta Fraternidade é o Maha-Guru Baghavan Naraiana. Depois dele vêm os trinta e nove Anjos Planetários e que vivem em Badari Vana, região montanhosa ao norte do Himalaia e que serve de centro para a poderosa atividade dos Mestres.

Fiquei ouvindo em silêncio. Logo minha atenção foi atraída por uma intensa luminosidade que se fez diante do altar...

Novos sons maviosos vibraram no ar e então por uma grande nuvem luminosa, surgiram os quarenta Mestres que regem a Fraternidade Branca do Oriente. A princípio pareciam seres etéreos, vestidos com amplas túnicas brancas que flutuavam no ar, sem tocar a terra. Pouco a pouco suas figuras luminosas foram se adensando até que se tornaram muito reais. Um deles falou:

- Nós, os seres cósmicos, os Elohins, os Arcanjos, vos chamamos e vos estendemos nossas mãos, ó humanidade sofredora! Deixai a discórdia da terra e tornai-vos nossos discípulos, tornai-vos o canal, a taça de cristal resplandecente de luz, por onde fluirá o nosso amor, nossa sabedoria e nosso poder. Ergo a minha mão direita e envio jatos de chamas azuis a todos que precisem de uma intervenção divina! Nada resiste a esta luz cósmica, nada pode subsistir que não seja luz!

Vimos que de suas mãos diáfanas emanavam grandes luzes azuis. Ficamos confusos. Estaríamos mesmo vendo tudo aquilo, ou acaso éramos vítimas de uma sugestão hipnótica? Não tive tempo para raciocinar, pois logo, acima do altar, vimos formar-se um grande sol luminoso, como se refletisse a luz de milhares de sóis. Deste sol saíram sete raios dourados que se irradiaram sobre todos nós e logo se fundiram numa brilhante forma imprecisa.

- Olha! É o Buda Maitreya que vem abençoar a humanidade! - murmurou o rajá Dorge trêmulo de emoção.

Eu mal podia acreditar nos meus próprios olhos.

E todos cantaram:

- Tudo está pronto. Vem, ó Mestre! Vem!

Era o momento exato do plenilúnio. Pouco a pouco a aparição foi se definindo, até que vimos a figura do Buda Maitreya, o Buda do futuro.

Todos se ajoelharam e inclinaram a cabeça, logo ergueram o busto e com as mãos estendidas para a divina aparição, cantaram implorando sua bênção.

O Ser Excelso que flutuava acima do altar aparecia sentado, com as pernas cruzadas na postura do lótus, vestido com uma túnica amarelo-dourada. A mão direita apontava para o céu e a esquerda para a terra. Seu belo rosto, cor de marfim, refletia uma beleza extraterrena e uma grande serenidade. Os olhos eram intensamente azuis, de um lindo azul-violeta, os cabelos escuros lisos e brilhantes caindo-lhe sobre os ombros.

Terminados os cânticos, o Ser Excelso pegou a tigela dourada que estava sobre o altar e, durante um momento, ergueu-a acima de sua própria cabeça. Ao repor a tigela sobre o altar ele sorria bondosamente.

Súbito, uma chuva de pétalas de flores caiu sobre todos nós e um perfume maravilhoso espalhou-se pelo ar. Logo, a aparição de Buda esboçou um gesto de bênção e aos poucos foi desaparecendo até sumir completamente.

O povo cantou a saudação do ritual:

Hari! Om! Tat! Sat! (Senhor Tu és Aquilo! Inexpressável Unidade!)

À medida que o Buda Maitreya - a representação máxima da força crística - desaparecia, foram desaparecendo também as formas materializadas dos Mestres da Fraternidade Branca do Oriente.

A uma ordem dos ascetas que regiam a cerimônia, formamos uma fila e cada um de nós bebeu um pouco da água que estava na tigela de ouro, contendo as vibrações do Buda Maitreya.

Depois todos se saudaram, unindo as palmas das mãos sobre a testa, num sincero "namastê" e cada um foi se retirando.

Por algum tempo fiquei imóvel, perguntando a mim mesma se tudo o que vira não fazia parte de uma visão fantástica ou de um sonho. Até hoje não posso explicar as desencontradas emoções que senti durante o santo Festival de Wesak aos pés dos Himalais. Hoje, ao tentar reconstituir este tesouro de lembranças que guardo na minha alma, repito para mim mesma o velho provérbio chinês do "Shan Hai King" ou Livro das Terras e Mares:

"As coisas que o homem conhece verdadeiramente, não podem ser comparadas em número com as que lhe são desconhecidas..."

Ao recordar as visões do Festival de Wesak, sinto-me ainda à mercê de uma força impenetrável e misteriosa que faz com que eu pare de ser eu mesma, para me transformar no canal difusor dos sublimes ensinamentos dos Mestres da Fraternidade Branca do Oriente.

Que eles nos abençoem e nos ajudem a cumprir nossa missão sobre a terra!

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