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MISTÉRIOS E MAGIAS DO TIBETE
Chiang Sing


Parte III - Resumo:
O Lama de Latchen
Os Sábios Alquimistas
Maravilhosas visões de um passado distante
A Sombra do Buda
O Teatro Tibetano
Os Ascetas que meditam nus sobre a neve
As Monjas do Templo da Calma Profunda
O Rei do Mundo e os misteriosos reinos subterrâneos

O Lama de Latchen

Eram quatro horas da tarde quando chegamos ao Mosteiro da Sagrada Luz de Buda, onde vive o Lama de Latchen com seus discípulos. Situado na encosta de um monte ele domina as casinhas da aldeia. Sua arquitetura lembra muito o "Chorten Nyima" ou Santuário do Sol que há em Gangtok, mas que não tivemos oportunidade de visitar.

O andar térreo do mosteiro só tinha duas grandes janelas, mas haviam três lindas portas de cedro esculpidas de Budas, acima das quais estava fixado o velho emblema budista: uma cruz suástica pintada em branco. O Lama de Latchen recebeu-nos pouco depois da nossa chegada, num grande salão do primeiro andar.

Ao longo da parede em que se abriam as janelas, havia um pequeno palanque alto, coberto de almofadões bordados e tapetes de lã tecida com fios laranja, azul e rosado formando desenhos de flores e borboletas.

Nesse palanque ou tablado haviam mesas estreitas de ébano e marfim. Numa outra parede vimos várias prateleiras com objetos sagrados. Pinturas em seda representando deidades lamaístas enfeitavam todo o ambiente.

Sentado numa "gomti" ou cadeira de meditação, o Lama de Latchen nos recebeu cordialmente. Ofereci-lhe uma echarpe de seda branca e em troca recebi outra igual, como manda o protocolo tibetano. Timidamente murmurei um agradecimento em tibetano:

- Todechi!

Era a primeira vez que tentava falar tibetano. Meus esforços pareciam divertir o Grande Lama.

Sua expressão bondosa pareceu-me muito familiar. Tinha um sorriso manso, de quem encontrou a Paz Profunda. Seu rosto magro e anguloso, era cor de bronze polido. Seu corpo era fino, nariz grande e boca firme. Os olhos pequenos e vivos; em volta deles a pele se contraía em pequenas rugas. Os cabelos grisalhos eram reunidos numa trança que lhe caía pelas costas, à maneira chinesa. Na cabeça um chapéu de seda amarelo, pontudo como a Mitra do Papa, tinha pequenas abas debruadas de peles. Olhei bem para ele e recordei as palavras do abade do mosteiro de Kargyompa:

"- Meu Mestre, o Lama de Latchen, vive ainda, apesar dos seus quatrocentos anos de idade...".

Será realmente possível que alguém viva quatrocentos anos?

E poderia um velho desta idade matusalênica ter a aparência de um homem de sessenta?

Não sei, tudo me parece muito confuso...

Observo o Lama, silenciosamente, enquanto Kazi e Vessantára conversam com ele. Sua expressão é modesta e tranquila e apesar de não usar os singelos hábitos monásticos, irradia doçura e humildade. Pendia-lhe do peito um longo rosário de brilhantes azuis mesclado com contas de jade verde musgo.

- Espero que sejam meus hóspedes por algum tempo - disse o Lama em inglês, com um ligeiro sotaque. Devem considerar como se estivessem em suas casas. As cerimônias e formalidades são próprias apenas do mundo profano. Deixo-os ao cargo do meu discípulo Kazi, que já conhece o mosteiro.

E assim dizendo o Lama afastou-se.

- Como? Também estudou aqui? - perguntamos surpresos. E Kazi respondeu modestamente:

- Sim... na minha infância ... quando eu tinha oito anos, vim para este mosteiro, aos cuidados de um Lama nosso amigo. Com ele aprendi um pouco, mas só fui iniciado quando chegou o Venerável Lama Trinazadin que acaba de nos deixar.

- É verdade mesmo que ele tem quatrocentos anos? - indaguei incrédula.

- Talvez... minha jovem senhora ... há séculos que o Lama Trinazadin ilumina, com a sua presença, as regiões do Himalaia... Consta que ele é emanação divina do Mestre Djwal Khul que faz parte da Fraternidade Branca do Oriente. Seu corpo tem sempre a mesma aparência de serena maturidade. Quando caminha não projeta nenhuma sombra e seus pés não deixam marcas sobre a terra. Sabe-se que há milênios ele assumiu um compromisso, relacionado com o progresso evolucionário da humanidade. Aqui ele exerce sua influência em silêncio e de maneira desconhecida para o resto do mundo...

Fico perplexa ante estas assombrosas afirmações. Tenho a mente aberta, sem nenhuma intenção crítica e não ofereço mais nenhuma resistência às palavras de Kazi.

Nosso amigo Kazi levou-nos para conhecer o resto do mosteiro.

Andamos por uma ala cheia de celas ou "gompas" silenciosas. Passamos por diversos altares cheios de divindades, andamos por espaços cobertos e descobertos. Tudo aquilo me parecia muito familiar. Fiquei muito intrigada. Afinal, eu nunca tinha estado ali antes. Porque esta impressão tão estranha?

Chegamos a um pátio cheio de claustros.

- Aqui ficam os aposentos dos hóspedes - disse Kazi.

Escolham os que quiserem.

Assim o fizemos. Fazia muito frio e a cela que escolhi era úmida e simples. Um noviço trouxe água quente para nosso banho. Tirei as pesadas botas de couro forradas de pele de carneiro, e a pesada roupa de montaria. Após me lavar numa bacia, vesti roupa quente e limpa. Mais tarde apareceu Kazi e nos levou a um salão onde a refeição estava servida. Era uma sopa de cereais com creme de leite fresco, pão de centeio e chá com bastante manteiga. Nunca nenhuma comida nos pareceu tão deliciosa...

Os lamas não comem nada à noite. Limitam-se a apenas uma refeição por dia. Após o jantar, fomos repousar. Dormimos a noite toda. Na manhã seguinte, bem cedo ainda já estávamos de pé, tranquilos e bem dispostos.

Ficamos quatro semanas no Templo da Sagrada Luz de Buda e lá aprendemos muitas coisas. Tal como em Kargyompa o dia para eles começava muito cedo. A música religiosa que escutávamos pela manhã, à tardinha e ao crepúsculo, era melodiosa e convidava à meditação. Todos os dias o ritual era o mesmo. No grande altar principal eles acendiam velas, sempre em número ímpar. Colocavam taças de cristal com água e riscavam no chão o círculo mágico ou "kyilkhos". Consta que é através destes círculos que são dadas as ordens para uma série infindável de espíritos e elas são obedecidas sem vacilação. O desenho ou "ponto" serve como identificação da Entidade chefe manifestada. Eram usados pós nas sete cores fluídicas exotéricas das sete legiões angélicas. Em seguida a defumação de todos com o incenso abençoado pelo Grande Lama. O altar era formado por duas partes. A parte superior, ou oratório tinha a imagem do Buda Maitreya, flores, rosários coloridos, as taças de água e velas também coloridas. A parte inferior do altar é secreta, ficando sempre fechada por uma cortina de seda amarela. Dizem que contém elementos naturais como favas, sementes, metais, contas e raízes sagradas. Todos os dias eram oferecidos banhos com ervas socadas numa tigela de madeira. Eles deviam ser tomados do pescoço para baixo e a pessoa ficar com os pés apoiados sobre a terra ou sobre carvão mineral. Eles servem para a limpeza do campo magnético, assim também como o incenso. Indagamos porque eles usavam velas só no número ímpar. E a resposta foi:

- Porque os números ímpares são positivos, "Yang" solares e masculinos. Os números pares são negativos, "Yin", lunares e femininos. As velas e as taças com água representam os dois elementos: água e fogo, considerados elementos essenciais da Natureza.

Durante o ritual os lamas cantavam hinos mágicos chamados "Mantras" ou palavras de poder. São sons místicos que põem em movimento certos planos da Natureza, produzindo assim maior afinidade vibratória entre os planos da matéria e do espírito.

Além destes ritos diários, tivemos oportunidade de assistir certas experiências alquimistas muito interessantes.

O inverno chegara. E tal como estava previsto, toda a paisagem se cobriu de neve, bloqueando os vales que conduziam à montanha. O Lama de Latchen encerrou-se em retiro. Aproveitamos para aprender alguma coisa com seus discípulos.


Os Sábios Alquimistas

Certa manhã, bem cedo ainda, Kazi veio bater na porta da minha cela:

- Venha conhecer nosso laboratório alquímico! Já falei com nossos companheiros de jornada e eles estão à sua espera.

Vesti-me apressadamente, fiz uma ligeira toalete e saí ao encontro do grupo. Guiados por Kazi, descemos corredores estreitos e fomos dar numa sala subterrânea, ante uma grande porta de ferro, que a um sinal de Kazi, Pierre abriu. Uma onda de luz escapou pela porta. Era uma sala ampla, sem janelas, mas recebia luz de uma cúpula de cristal translúcido, sobre a qual, muito acima das nossas cabeças, vimos um duplo triângulo entrelaçado. Em volta dos triângulos, de grandes dimensões, vimos uma serpente de ouro mordendo a própria cauda. Embaixo do emblema, havia uma mesa de mármore redonda, em cujo centro desenhada sobre metal dourado, uma cruz suástica - o grande símbolo budista.

Súbito, ouvimos rolar alguma coisa como que uma pesada porta de ferro. Fomos envolvidos por uma luz deslumbrante. Notei que a parede fronteira se abrira, e que estávamos no limiar de um outro aposento, em cujo extremo via-se um pequeno altar feito de seixos rosados e sobre ele um grande triângulo de ouro, tendo no centro um enorme brilhante, como se fosse um grande olho fosforescente.

Desse olho jorrava uma intensa luz, que atravessava as grossas paredes como se elas fossem transparentes como gaze. Os raios dirigidos para cima iam bater num bloco de metal dourado, suspenso por grossas correntes, também douradas.

A um canto vimos uma enorme mesa de mármore, sobre a qual estavam um par de alambiques, alguns frascos de vidro colorido e dois livros.

Olhei em volta, esperando encontrar algum forno, estufa, reporta ou outros utensílios mencionados nos livros de alquimia. Como que adivinhando meus pensamentos, Kazi falou:

- Meus honoráveis amigos, aqui no Tibete, como em outras partes do mundo, a verdadeira Alquimia é espiritual e não exige nenhum trabalho mecânico. Só o poder da nossa mente transforma o homem comum em ser divino.

- Mas, como é possível esta transformação? - indagou Pierre Julien.

- Os lamas chamam "metais" aos princípios invisíveis que constituem o ser humano, pois são mais eternos do que a carne e o sangue. Os metais, formados por nossos pensamentos e desejos, continuam existindo, mesmo depois da morte. Os princípios animais do homem representam os metais de qualidade inferior, que devem ser transformados em metais mais puros, trocando os vícios sem valor pelo ouro da espiritual idade.

- E como se alcança isto? - indaguei.

- É preciso que os mais grosseiros elementos da forma morram naturalmente. Na alquimia material os processos são diferentes.

Ouvimos passos atrás de nós. Era um lama bem idoso que acabava de entrar. Seu nobre rosto moreno é fino e de expressão espiritual. A cabeça raspada e olhos tranquilos. Usa a túnica de algodão amarelo que os tibetanos chamam de "zen".

- Seja bem-vindo, irmão Kuchog! - disse Kazi. E o lama respondeu:

- Ouvi suas últimas palavras, meu filho. Orgulho-me de ter sido um dos teus instrutores...

Kazi sorriu e falou:

- Foi graças ao lama Kuchog que ingressei neste mosteiro, quando tinha oito anos de idade.

- Foi graças ao teu merecimento e não a mim - retrucou Kuchog.

- Já que teve a bondade de honrar-nos com a sua presença - continuou Kazi - poderia comprovar a verdade das nossas teorias para estes irmãos?

- Vou tentar. - Foi a resposta do lama.

Kuchog pegou um crisol que estava sobre a mesa e após verificar que estava vazio, colocou-o sobre um trípode, em cima da chama que ardia diante do pequeno altar.

- Poderiam ceder-me uma moeda de prata ou de cobre? - pediu.

Vessantára tirou do bolso uma pequena medalha de cobre, que usava sempre como talismã astrológico, pois era do signo de Libra, e indagou:

- Isto serve?

- Sim.

E pegando na medalha Kushog colocou-a dentro do crisol. A medalha derreteu-se. Kazi entregou-lhe um vidrinho com um pó verde claro. Kuchog, com uma colherinha de marfim, colocou alguns grãozinhos do pó dentro do crisol. Era uma quantidade ínfima que mal se notava. Queimou-se imediatamente. Logo, o metal fundido entrou em ebulição. O líquido ficou irisado de cores lindas. Dez minutos depois a ebulição cessou. A massa espumosa precipitou-se no fundo do crisol. Kushog esperou até que a massa ficasse imóvel. Então, retirou-a do fogo e verteu o líquido lentamente sobre a mesa de mármore. E, oh, maravilha!

A massa se solidificou e transformou-se em ouro puro! Incrédulo, Pierre indagou:

- Será realmente ouro?

Kuchog sorriu e respondeu em inglês:

- Pode mandar analisar. Assim ficará certo de que não foi vítima de uma ilusão...

Fiquei atônita. Quanto não dariam os homens para conhecer o segredo daquela alquimia?

Observando nosso assombro, Kuchog falou:

- Toda substância metálica possui o germe do ouro em sua própria matéria primordial. Mas para transformar um outro metal em ouro é preciso termos a semente do ouro, que é aquele pozinho verde. Por causa da sua ambição por riquezas, os alquimistas ocidentais ainda não conseguiram a transmutação de qualquer metal em ouro. Aqui no mosteiro, nós só almejamos o progresso da ciência.

Ouvimos o som de um gongo chamando para as orações matinais.

Kuchog despediu-se e saiu. Ficamos ainda um pouco mais no laboratório ouvindo Kazi falar sobre os segredos da alquimia dos lamas. (1) Finalmente, deixamos o laboratório e ingressamos na rotina do mosteiro.

_______
Nota:

(1) - Tivemos mais tarde uma prova real da alquimia dos lamas. Tempos depois, ao chegarmos de volta à cidade indiana de Laddak - fronteira da Índia com o Tibete - Vessantára mostrou a ex-medalha de cobre a um joalheiro. Ele testou o material com ácidos apropriados. Viu que era ouro mesmo. De volta à Europa, Vessanntára mandou examinar a ex-medalha por diversos joalheiros. A conclusão foi de que aquele metal era realmente ouro.


Maravilhosas visões de um passado distante

Dias depois, o Lama de Latchen mandou me chamar. Entrei numa ala ajardinada, na parte norte do mosteiro e cheguei diante de uma porta dourada que se abriu assim que me aproximei. Penetrei numa sala toda branca ornada com as famosas pinturas sobre seda representando os Budas da meditação que são: Vairocana, Akshobia, Amitaba, Ratna Sambhava e Amoga Sidi. Cada um deles ocupa um ponto cardeal e possui uma cor característica. Um noviço apontou para outra sala e mandou que eu entrasse. As paredes eram forradas de brocado azul claro, ornadas também com pinturas de Mandalas ou círculos coloridos nos quais a divindade principal é colocada no centro, e Yantras,formas geométricas usadas na magia.

Num canto da sala, havia um Buda gigantesco, magro e esguio como todos os Budas da Índia e do Tibete. Era talhado em madeira clara e sua expressão era de absoluta calma. No centro da sala havia um divã forrado de seda branca. Mesinhas de laca, finamente pintadas, continham rolos de seda e pergaminhos sagrados.

Sentada num tamborete coberto de pele de raposa branca, vi uma mulher de idade indefinível. Ao seu lado, em pé, estava Trinadzin, o Lama de Latchen. Ambos usavam a túnica de seda amarela. Perto deles já estavam sentados Pierre Julien, Vessantára, Kazi e Mahima.

Fiquei contente em vê-los ali.

Com um sorriso manso o Lama falou:

- Vem, pequenina irmã, e saúda a nossa Antiga Mãe! Compreendi que se tratava da abadessa do mosteiro e inclinei-me numa reverência. Para meu espanto ouvi-a dizer em inglês:

- Há vários ciclos que estávamos à tua espera, pequenina irmã! Os pés do deus do destino foram lentos em conduzir-te... mas chegou o tempo, não é mesmo?

Atônita, eu não sabia o que responder. Olhei para meus companheiros. Todos também pareciam perplexos. Olhando-me bem nos olhos Trinadzin disse:

- As palavras da nossa abadessa parecem estranhas, não é mesmo, ó flor esperada?

- Confesso que sim, Pai da Alma Diamante.

- E no entanto, em outros tempos teu cérebro não era tão obtuso, velado pelo véu de Maya... mas breve a luz se fará e terás novamente os sete preciosos dons.

Fiquei meio tonta. Notei que uma corrente incessante de pensamentos me chegava ao cérebro. Trinadzin pegou minha mão direita e murmurou uma oração mágica. Então, comecei a ver misteriosos reflexos azuis e alaranjados. Uma névoa deslizou pelo teto. Pensei que estivesse doente. Senti que me afastava de mim mesma e a voz de Trinadzin soou, longínqua:

- Em nome de todos os Budas eu te confiro o poder de lembrar existências passadas, através a imensidão do tempo...

- Regressa ao passado! Fixa a tua mente e lê o teu passado. Seguiu-se um silêncio. Continuei tonta, inerte como se estivesse anestesiada. Algo penetrante como o brilho de uma lâmina passou ante meus olhos. Senti uma sensação vertiginosa. Fiz um esforço para mover-me, falar... , mas em vão... visões se desenrolaram ante meus olhos assombrados. Não sabia se estava acordada ou sonhando. Vi-me como uma princesa chinesa, vestida de sedas macias e jóias raras. Senti como se eu fosse a vestal de um templo perdido nas montanhas. E toda uma encarnação de quatro mil anos atrás foi recordada.

Uma voz que me pareceu ser a de Trinadzin, falou:

- Não permitas que a saudade perturbe tua mente! Prossegue recordando! Volta ao passado!

Uma pesada névoa baixou sobre meus olhos. Depois... tive uma visão das pirâmides ... vi o Templo do deus Amon... e logo como se eu fosse um sacerdote deste templo... outra grande névoa cobriu os meus olhos e quando pude ,ver distingui as terras onde nasce o rio Nilo... Abasce ou Etiópia... diante de um altar de mármore branco, uma mulher envolta em véus cor de violeta estava de costas para mim. Devagar ela foi voltando o rosto e vi que era eu mesma!

- Continua regredindo ao passado! - ordenou uma voz. Outra grande névoa ante meus olhos. Depois, vi o Templo da deusa Kali - a Mãe dos Mundos - às margens do rio Ganges. Um grupo de bailarinas sagradas dançava diante da estátua da deusa e... uma delas era eu!

- Mais longe ainda, falou a voz.

A visão desapareceu. Outra pesada névoa passou ante meus olhos. Vi uma terra muito estranha com pessoas de pele cor de cobre avermelhada... numa colina um menino apascentava cabras. E de repente o menino era eu!

- Estás na velha Atlântida - disse uma voz - agora volta! Senti-me num redemoinho de luz e de repente abri os olhos e estava junto da abadessa e do Lama Trinadzin.

- Que maravilha! - exclamei perplexa com aquelas experiências psíquicas.

- Tivestes oportunidade de ver algumas de tuas vidas passadas. - falou Trinadzin.

Ainda sob o impacto da emoção, indaguei:

- Mas por que só vi épocas tão remotas?

- Porque não reencarnastes após seres vestal e princesa chinesa e isto foi há quatro mil anos. Traístes teus votos de castidade e fostes amaldiçoada. Agora vais ver como nós te libertamos desta terrível maldição.

Outra vez a sensação de tonteira. Logo uma nuvem cinzenta cobrindo os meus olhos. De repente vi-me numa grande sala subterrânea iluminada por tochas. Junto de mim estavam Trinadzin e vários lamas. Seus rostos eram graves e solenes, seus crânios raspados e suas túnicas cinzentas.

No centro da sala, em cima de uma mesa, estava um caixão de cristal. Dentro, um vulto impreciso. Ouvi o som de um gongo, logo os lamas rodearam o caixão. Trinadzin aspergiu o corpo imóvel com perfumes. O gongo soava sempre. Seria eu a morta? Queria sabê-lo, mas ao mesmo tempo, temia a verdade. Uma força superior fez com que eu me aproximasse do caixão. E com assombro vi que, amarrada e amordaçada, ali estava, eu mesma!

Senti um terror indescritível. Quis desviar os olhos, mas não pude. Trinadzin introduziu o dedo mínimo num pequeno orifício que aos poucos se abria no alto da cabeça da morta. De repente ele gritou:

- "Hick!"

Quando retirou o dedo vi um vapor cinzento se condensando até formar um corpo transparente de mulher. Estava ligado ao cadáver por um cordão de névoa prateada, que se alargava indefinidamente. O pior é que eu me sentia dentro do cadáver e fora dele! E... o cordão se rompeu. O mais curioso é que o cadáver foi encolhendo rapidamente até que desapareceu. Fechei os olhos com medo. Senti que alguém apertava a minha mão direita com energia. Logo alguém falou:

- Confia em mim! Fixa tua mente e vai a qualquer lugar da terra que desejes!

Senti-me leve, flutuando no ar e um anjo parecia guiar-me docemente.

E, de um lugar a outro, voei por terras desconhecidas que sempre desejei conhecer... Grécia... Egito... Turquia... meu corpo não tinha peso e estava ligado ao meu corpo físico por um fio violáceo, de substância vaporosa. Tudo o que me rodeava era feito de matéria fluídica. Mas... de repente, tudo ficou escuro. Ao voltar a mim ouvi Trinadzin dizer:

- Volta, pequenina irmã!

Deslizei por uma nuvem irisada como madrepérola. Repentinamente fui atraída para baixo, por uma sucção como se fosse um redemoinho. Quando voltei a mim, estava sentada numa "gomti", cadeira de meditação. Ao meu lado estavam Trinadzin, a abadessa e meus companheiros de viagem.

Não tinha então lembrança completa da experiência que acabei de descrever, as quais foram recordadas depois. Tinha uma lembrança vaga de tudo. Abri e fechei os olhos várias vezes. Olhei em volta. Tive uma grande surpresa: meus companheiros de viagens estavam imóveis, dormindo tranquilamente, como se estivessem hipnotizados...

- Não estavam preparados para ver aquilo que vistes. - disse Trinadzin mansamente. Mas... eu precisava da presença deles aqui, por causa de suas correntes vibratórias...

E assim dizendo Trinadzin fez um gesto de bênção e saiu acompanhado pela abadessa. Logo depois meus companheiros voltaram a si.

- Que aconteceu? - perguntou Pierre.

- Acho que todos nós dormimos profundamente - respondi.

Nisso entrou um noviço trazendo uma bandeja com broas de cevada e chá com manteiga.

Tomamos chá, conversando animadamente sobre tudo que nos acontecera, mas não lhes falei sobre a minha experiência como defunta no caixão de cristal.

- O que você teve foi uma experiência de regressão parapsicológica! - falou Pierre.

- Sem dúvida! - concordei. Mas... eu gostaria de saber o que se passa realmente depois da morte...

Então, Kazi falou:

- A morte não existe, porque a vida continua em outros planos superiores. Nosso Livro dos Mortos Tibetano (Bardo Thodol) faz uma sondagem na alma humana depois da morte. Este livro é recitado pelos monges no quarto de um moribundo, como uma preparação para a grande viagem. Descreve o que ele irá ver à medida que for perdendo sua consciência de vigília. Em certo trecho está dito: temos um corpo etérico chamado duplo que se desloca, afastando-se completamente do corpo físico denso. Há o rompimento do cordão de prata que une os corpos, e a massa etérica com seu átomo primordial, localiza-se no ventrículo esquerdo do coração, sobe depois pela nuca, saindo pela sutura do crânio, essa parte onde se encontra o osso occipital e os dois parietais. Neste local as crianças têm a "moleira" e todos nós temos o centro de força energética sutil chamado "lótus de mil pétalas".


O duplo etérico tende então a se dissolver no seio do Universo. De um modo geral ele dura de 24 a 48 horas, não mais, a não ser em casos mui especiais. A consciência física sofre uma parada, mas logo, sobrevém aquilo que conhecemos como o grande sonho, que é o primeiro descanso do espírito. Então, quando se rompe o cordão prateado, este sono vem e dura cerca de um ou dois anos. Muitas vezes, devido ao desespero dos parentes nos velórios, este sono é interrompido com alguns pesadelos e lembranças de sua última vida na terra. Por esta razão não devemos perturbar o espírito que dorme com nossas lágrimas e nossa tristeza.

Antes que o fio prateado seja rompido, passa pela consciência do moribundo, de trás para frente, cenas de sua vida passada na presente encarnação - Por isto o "Bardo Thodol" diz:

"Ó filho de uma nobre família, filho de outros seres, escuta! Agora vai aparecer diante de ti a luz do Puro Absoluto. Tens que reconhecê-la, ó filho de uma nobre família. Neste momento o teu intelecto é claro e límpido."

- Nesta fase - continuou Kazi- não deve haver nenhum chamado, como se faz em sessões espíritas no Ocidente e também aqui no Tibete. Os recém desencarnados devem ficar em paz, é preciso que eles descansem, não devem ser perturbados, pois isto atrasa sua viagem evolutiva através dos planos que terá que galgar. Ao final do segundo ano da morte física, o ser vai despertando lentamente até acordar no subplano correspondente à sua evolução espiritual. Quando desperta, imediatamente vem o Elemental do Desejo fazer o seu trabalho de amor. A meta deste elemental é se tornar mineral, então ele envolve num processo de casulo, um manto de luz em torno do ser que desperta. Assim ele poderá fazer a redistribuição do desejo através de todo o seu corpo. Despertando o ser, ele se sente num estado de paz, e poderá encontrar seus parentes ou amigos, encarnados ou desencarnados. Ele pode intuir, pode irradiar sua vontade, pode vibrar, mas jamais incorporar. A incorporação só pode ser feita pelos Guias Espirituais destinados ao trabalho de instrução na terra. Também alguns seres encantados da natureza podem incorporar num médium (os seres encantados são intermediários entre o homem e outros planos sutis). Entre eles temos os "Tísas" (1) que deslocam quase que totalmente o duplo etérico do médium ou "powo" e a incorporação se faz totalmente inconsciente. Quanto mais evoluído é o Guia Espiritual mais consciente é o médium.

Passado o encontro com seus entes queridos, o ser desencarnado vai à presença dos Senhores do Carma e escolhe sua próxima encarnação, de acordo com seus méritos. Então, esquece suas vidas passadas e entra na Roda das Encarnações. Um dia, se liberta completamente das reencarnações e se une com Deus. Quando chega ao grau de Guru ou Adepto, e já queimou o seu Carma, o ser desencarna em estado de consciência e alcança logo o plano superior. Vai ao plano mental abstrato num estado de superconsciência: aí permanece algum tempo. Depois passa a outros planos espirituais onde se torna um Mestre Ascensionado.

- É maravilhoso, tudo isto! - exclamei emocionada. Obrigada por nos dar estes conhecimentos.

Tomamos o chá e depois saímos para o ar puro do jardim. Andando por entre as alamedas floridas, recordei um trecho dos Upanishads:

"Do irreal conduz-me ao Real, das trevas à Luz!"

É Guru ou Mestre que vai nos dar ajuda para trazermos gradualmente à luz, o que estava oculto para nossa consciência. Ele é como o Sol que nos revela ao vencer as sombras, a verdadeira aparência das coisas...

E mais uma vez, no íntimo do meu ser, agradeci e abençoei Kazi e Trinadzin, o Lama de Latchen.

_________


Dois dias depois, deixamos Latchen e continuamos viagem. Em nossa jornada que durou vários dias, passamos pelas cidades de Phari Dozng, Tuna, Dochem e Kala, aos pés dos montes Chomolari ou Montanha da Senhora Deusa. Destas cidades a mais interessante foi Phari Dzong, que fica numa altitude de 4.450 metros e quiçá seja uma das cidades mais altas do mundo. Embora bastante suja, as ruas são amplas e algumas casas são bonitas. O povo tem um cheiro muito desagradável, mistura de manteiga rançosa com alho. Os tibetanos geralmente não tomam banho, nem mudam roupa com frequência. A maioria lava-se uma vez por ano, no verão, quando mergulham nos rios e esfregam o corpo com uma pedra pequena enrolada em folhas de fibra resistente.

Se não fosse o fato da extrema altitude destruir a maioria dos micróbios, tais hábitos anti-higiênicos teriam destruído quase toda a população do Tibete. Deixando Phari Dzong, Tuna e Dochen, cavalgamos até as margens do rio Rham. Um bando de gazelas fugiu ao perceberem nossa aproximação. Fomos seguindo, passamos pelo desolado vale de Kala, completamente desabitado. Pouco depois alcançamos um povoado onde pernoitamos na casa de um pastor de iaques. No dia seguinte prosseguimos viagem e fomos indo até chegarmos ao lindo vale de Nyang Chu. Nossos cavalos tiveram dificuldade em andar, devido ao excesso de lama na estrada que margeava o rio Nyang ou Rio da Alegria. Mais além, vimos pequenos campos com plantação de trigo e legumes, cercados por um grupo de casinhas de pedra. Vimos alguns camponeses trabalhando nos campos. Conduziam arados puxados por iaques.

À medida que avançávamos pelo vale, este perdia seu aspecto bonito e próspero: casas, campos e vegetação foram desaparecendo. Apareceu então um vale escarpado, cheio de rochas e precipícios e em seguida, uma garganta chamada "Garganta do Ídolo Vermelho". Chama-se assim porque tem muitos monumentos religiosos de origem indiana, cujo nome é "stupa". Estes monumentos são encimados por belas imagens de divindades budistas, pintadas em azul forte, verde, vermelho e amarelo.

Tivemos que desmontar e seguir passo a passo, conduzindo nossos cavalos, até que a garganta se alargou e pudemos montar novamente. Saímos num vale cheio de vegetação luxuriante. Meia hora depois encontramos dois soldados indianos. Pararam na nossa frente e pediram nossas autorizações de trânsito, em nome do Governo inglês, pois nesta época o Tibete estava ainda sob o protetorado britânico. Examinaram os documentos e depois mandaram que prosseguíssemos. Cavalgamos rumo à cidade de Samada e passamos pelo "British Indian Trade Agency", um forte tibetano sob o comando do inglês Major Pearson.

Procuramos um mosteiro para hospedarmo-nos como era nosso hábito, mas não encontramos. Chegamos a uma grande casa branca e batemos. Veio atender-nos um velho pastor, que morava ali com a mulher e a filha. Beijando a fímbria do manto amarelo do Lama Kazi, o pastor convidou-nos a repousar um pouco em sua casa. Ofereceu-nos chá com manteiga. A casa era simples e acolhedora. Constava de uma sala, cozinha, e quatro quartos grandes. Banheiro não havia. Os tibetanos usam um buraco no chão como vaso sanitário e tomam banho em bacias, quando tomam...

Repousamos uma noite e prosseguimos viagem. Pouco além da cidade de Samada, havia uma gruta famosa por seus prodigiosos milagres. Fomos andando em direção da gruta. O caminho descia bruscamente no meio de uma floresta. Fazia muito frio e nossa marcha era difícil.

- Por que esta gruta é sagrada? - indaguei curiosa. E Kazi respondeu:

- Dizem que há muitos séculos uma Presença Divina santificou a gruta e desde então, a sombra do santo Avalokita Ishvara habita nesta gruta. Contam que foi aqui que Sidarta Gautama, o Buda converteu o rei dos demônios. Prometeu então ao novo discípulo, que deixaria ali a sua sombra para recordar-lhe sempre o seu juramento, de seguir o bom caminho.

- E há realmente esta sombra?

- Ela aparece apenas às pessoas que têm fé e um coração puro!

Os caminhos que levavam à gruta, antigamente, eram infestados de bandidos. Mas hoje é um lugar de peregrinação constante e há até alguns noviços de mosteiros das cercanias, que servem de guias aos viajantes.

Descemos um declive montanhoso, cujo terreno acidentado, apertado entre serras e encostas, oferecia um caminho estreito, com subidas e descidas. Picos nevados se inclinavam sobre os lados do caminho. Afinal chegamos a um lugar onde o caminho parecia terminar. A direita erguia-se um grande rochedo, com uma das paredes toda esculpida em figuras de deuses e deusas.

- A gruta!

Foi nossa exclamação alegre e comovida. A nossa mente acudiram muitas evocações fabulosas. Ali, diante de nós finalmente estava a Gruta da Sombra do Buda. Desmontamos, entregamos os cavalos aos criados e avançamos apressados para a vasta cavidade redonda, que dá acesso à gruta.

- Não entrem! - gritou Kazi.

Paramos surpresos. Meu coração pulsava estranhamente. - Mas... por quê? - indagou Vessantára.

- Esta gruta é guardada pelos gnomos, os seres elementais da terra, e antes de entrar temos que cumprir com o ritual. Parem e observem em silêncio.

E assim dizendo, Kazi retirou do bolso interno da túnica amarela um estranho pó vermelho. Com ele traçou um círculo mágico ou "kyilkhos". Entrou no meio do círculo e fez a seguinte invocação:

- Ó Gob, rei invisível dos gnomos, que habitas o ventre da terra! Tu, que fazes correr sete metais nas veias das pedras, Monarca das Sete Luzes, permite que entremos no teu reino e que os mistérios nos sejam revelados!

Pareceu-nos que alguma força sobrenatural estava ali, perto de nós.

- Agora já podemos entrar. - disse Kazi.

________
Nota:

(1) - Correspondem aos Exus da Umbanda no Brasil.


A Sombra do Buda

Penetramos numa galeria subterrânea, estreita e sombria. Mais adiante vimos uma tosca escada de pedra que ia dar num amplo túnel.

O chão estava gasto, liso, como se fosse o caminho trilhado por muita gente, há muitos séculos. Fomos andando por dentro da gruta, dominados por um sentimento de respeito e maravilha. Por todos os lados reinava o silêncio. Os ruídos de nossos passos ecoavam e pareciam vir de muito longe. De repente o caminho se alargou. Fomos dar num recinto enorme que mal podíamos iluminar com nossas lanternas de bolso. O solo era coberto por uma areia fina e branca. Numa das paredes vimos um nicho cavado na rocha. Em volta dele muitas inscrições esculpidas na pedra.

Do outro lado havia uma espécie de coluna de pedra, apoiada sob uma elevação rochosa. Sob esta coluna, vimos algumas estátuas de bronze representando divindades lamaístas. Em volta delas, flores ânforas com perfumes e velas.

- São oferendas dos fiéis. É exatamente ali, atrás daquela coluna de pedra que costuma aparecer a sombra do Buda.

Kazi ajoelhou-se, ergueu as mãos juntas até a testa e começou a orar.

Sentamo-nos atrás dele, sobre a areia fina, com as pernas cruzadas na postura do lótus. Orei também, desejando sinceramente ser abençoada pela emanação divina que aparecia ali. Não sei quanto tempo fiquei de olhos fechados, rezando. Uma leve brisa, vinda de não sei onde, agitou nossos cabelos. Abri os olhos. Meu coração bateu apressadamente. Pareceu-me ver uma luz se formando junto à coluna de pedra.

- Ah! - exclamei atônita.

- Continuem concentrados! - disse Kazi.

Assim o fizemos. De repente vi formar-se na parede de fundo da gruta, uma bola de luz fosforescente. Era azul e dourada. Desta bola de luz saíram sete raios dourados que logo desapareceram junto com a bola. Então... deu-se o milagre! Toda a caverna ficou iluminada por uma luz tão forte e tão bela que me é impossível descrevê-la. Pouco a pouco a luz se condensou numa forma humana. Era a visão fluídica de Sidarta Gautama, o Buda, sentado sobre uma flor de lótus. Sua face jovem era tranquila e radiante e seu corpo magro, esguio como um junco num lugar sem vento...

Esfreguei os olhos assustada e tornei a olhar. A visão parecia sorrir docemente para nós. Todos nós olhávamos a visão boquiabertos. Esta durou apenas um momento e logo desapareceu.

Seria acaso uma alucinação? Um estado hipnótico que me fazia ver coisas que não havia?

Não sei... estava perturbada demais para raciocinar.

Por algum tempo ficamos em silêncio, reverentes e alegres por termos visto a maravilhosa sombra de Buda. E uma grande Paz inundou nosso ser.

Ainda hoje esta visão milagrosa, que tanta gente já viu, me emociona e entorpece como um filtro encantado.


O Teatro Tibetano

Quando regressamos a Samada, havia um ar de festa na cidade.

Soubemos que naquela tarde haveria uma representação teatral no hall do pequeno templo da Garganta do Ídolo Vermelho. Ficamos contentes em conhecer o teatro tibetano, que é profundamente religioso e lendário.

Após um breve repouso na casa do pastor, rumamos em direção ao templo.

Fomos encontrando multa gente pela estrada. Vestiam túnicas alegres e coloridas. As mulheres enfeitavam os coques ou as tranças com o tradicional "Patruk" broche de madeira, coral, veludo e outras pedras preciosas. A tarde estava fria e clara.

Chegamos em frente ao templo e vimos várias tendas armadas sobre a relva. Mulheres, homens e crianças iam e vinham, cantando alegremente. Escolhemos um lugar onde não, tinha muita gente. Sentamos na relva, comemos nosso farnel e ficamos aguardando o espetáculo, que é sempre feito ao ar livre.

- Como é a peça de hoje? - perguntamos. E Kazi respondeu:

- É uma história de amor sobre uma princesa chinesa e um rei do Tibete. O prólogo começa com um poema que diz:

A primeira Lua Cheia do ano viu
chegar ao Tibete a formosa

princesa Wen Cheng - a de olhos de
damasco e cintura de salgueiro.

Não tenhais medo, princesa, dos
nossos prados desertos, pois cem
bravos guerreiros formarão
vosso séquito!

Não tenhais medo dos nossos
rios profundos, pois cem grandes
barcos sulcarão suas águas tranquilas,
trazendo vossos pertences!

Chegareis a um formoso lugar cujo
nome é Beiguisiong e sereis amada
pelo nosso rei, que é belo
como um deus.

Então, a princesa Wen Cheng sorriu
feliz e continuou viagem tranquilamente,
levando um tesouro de sementes de três
mil e oitocentas plantas, impossíveis
de enumerar e descrever...

Este poema em tibetano chama-se "Emalanching". É um dos incontáveis relatos sobre a doce princesa Wen Cheng, que nosso povo canta com amor.

O que veremos é a história de amor desta princesa chinesa e nosso rei Srong tsan Gampo, seu sábio ministro Gar e de como ele conseguiu trazer a princesa para o Tibete. Os técnicos e artesãos chineses que vieram com a princesa, ensinaram o povo tibetano a cultivar a terra, fiar, tecer, construir casas, fabricar papel e tinta, destilar o vinho, fazer cerâmica e outras coisas importantes.

Em homenagem à princesa que era budista, o rei mandou construir o Mosteiro Yojan, situado no centro da cidade de Lhassa. Durante a construção, uma cabra sagrada chegou espontaneamente para ajudar a encher o grande lago artificial, que se cobriu de água clara e fresca a um só de seus balidos. A imagem da cabeça desta cabra encantada, ainda se pode ver hoje, alçando-se sobre o muro do velho mosteiro. Depois de pronto o mosteiro ficou sendo lugar de peregrinação. Muita gente vinha de longe ver as divindades budistas pintadas sobre os rolos de seda, e venerar um lindo salgueiro que a rainha plantara no jardim com as próprias mãos. Uma lenda diz que o salgueiro nasceu de uma mecha sedosa dos cabelos da rainha Wen Chang...

E assim, esta formosa princesa chinesa tornou-se rainha do Tibete, e viveu feliz com seu rei um perfeito romance de amor.

Assim que Kazi acabou de contar o enredo da peça, chegaram os atores. Estavam vestidos ricamente com roupas chinesas. E começou a representação. O povo parecia extasiado, com os olhos perdidos numa lenda encantada.

Houve muitas danças graciosas e diálogos intermináveis que só acabaram lá pela meia noite. E tudo termina numa apoteose, louvando o amor de Wen Chang e Srong tsan Gampo. Todo mundo se levanta e começa a ir embora. Saímos também, levando nos olhos a lembrança daquele teatro tão primitivo e poético.

No dia seguinte partimos de Samada. De novo a lenta caravana pelas estradas poeirentas, as longas caminhadas pelas montanhas, por caminhos escarpados e sinuosos. Seguíamos rumo à cidade de Khangma. Passamos pelas margens do rio Bhongh cha, com suas águas escuras e serenas. Continuamos viagem pelo vale de Gya chu e subimos em direção à Lonak. O caminho estava coberto de neve e tiritávamos dentro de nossas pesadas roupas de montaria, forradas de pele de carneiro. O vento glacial e o ar rarefeito atrasavam consideravelmente nossa viagem. Afinal, ao longe, meio encoberto pela bruma da tarde, vimos um mosteiro cravado no flanco da montanha.

- Ah! Ali moram os "Lung om pas"! disse Kazi.

- Como?

- São os famosos monges que levitam, os dragões alados do Tibete. - explicou ele.

- Ora não creio nestas bobagens! - resmungou Pierre Julien, visivelmente aborrecido.

- Contudo, amigo, elas existem! - retrucou o Dr. Vessantára, convicto.

O velho arqueólogo francês olhou-o ironicamente e ficou em silêncio.

- É muito estranho! - comentei.

- Sim... bastante estranho - concordou Pierre com um certo sarcasmo.

O sol ia se pondo devagar. Chegamos perto de um lago completamente coberto de gelo.

- Olhem! - exclamou Mahima.

O que vimos nos deixou muito intrigados.


Os Ascetas Que Meditam Nus Sobre a Neve

Sentados, com as pernas cruzadas na postura do lótus, às margens do lago gelado, um grupo de ascetas meditava. Estavam inteiramente nus, sob uma temperatura baixíssima, fustigados por um forte vento. Perto deles, dois ou três lamas de túnica amarela, quebravam gelo para mergulhar lençóis na água e envolverem os ascetas nus com eles.

- É a prova do "tumo" - o calor interno!

Os lamas fazem isto umas dez vezes, e os ascetas secam os lençóis rapidamente, com o calor de seu corpo. - explicou nosso guia. - Mas... como fazem isto? - indaguei admirada.

- Com o poder da imaginação e da vontade.

Isto não nos convenceu. Aproximamo-nos para, ver melhor. Pretendíamos tirar uma foto, mas o lama Kazi disse que não era permitido. Tratava-se de uma iniciação e os lamas não gostam de ser fotografados nestas ocasiões.

Os ascetas, sete ao todo, eram magros, secos como um pergaminho e nodosos como raízes. Estavam imóveis como ídolos, olhando para o seu próprio umbigo.

Soubemos então que eles estavam contemplando seu chakra ou centro de força, centro de força sutil que é chamado Muladara ou raiz. Neste centro dorme enroscada a serpente Kundalini. A evocação de Kundalini manifesta-se primeiro por uma sensação de aquecimento e uma impressão como se uma roda começasse a girar onde o chakra está localizado. Em seguida, depois de uma respiração profunda, imaginam embaixo da coluna vertebral uma chama em forma de fuso vermelho, girando rapidamente sobre si mesma; deixam crescer mentalmente esta chama até atingir seus membros inferiores, o plexo solar e em seguida os membros superiores e a cabeça. Deste modo só pela imaginação e poderosa concentração, esquentam o corpo como uma brasa. (1)

Para se submeter a esta prova, eles têm que praticar muitos exercícios respiratórios especiais, treinar a mente para uma concentração firme e ter recebido a iniciação de algum Guru. Uma vez indiciados na prática do "tumo" ou calor interno, renunciam ao uso de roupas e jamais se aproximam muito do fogo. De vez em quando, durante uma viagem a uma cidade, estes ascetas vestem uma minúscula tanga de algodão chamada "res", daí serem chamados também de "respas". Assim que os lençóis secam, os lamas voltam a mergulhá-los na água gelada. Os lençóis saem tesos e gelados e logo são enrolados em volta do corpo dos ascetas. Isto se repete até o amanhecer, então, aquele que secou maior número de vezes os lençóis, durante a prova, obtém o primeiro lugar.

- Quando param de praticar esta yoga do fogo, voltam a sentir frio? - perguntei.

- Sim, cessando a concentração e meditação profunda, aos poucos os corpos deles voltam a ficar sensíveis. Mas isto só acontece com os iniciantes, porque os mestres do calor interno, jamais deixam de produzir "tumo" no seu corpo.

Enrolada nos meus pesados agasalhos, estremeci de admiração por aqueles ascetas tão originais, que talvez passem a vida toda meditando nus, nas montanhas do Tibete...

Observamos que os lamas instrutores não estavam gostando da nossa presença ali.

- Deixemos os ascetas entregues às suas práticas e continuemos a viagem! - falou Vessantára.

- Que tal irmos visitar o templo dos dragões alados?

- Impossível, senhor - replicou Kazi.

- Que pena! - exclamei.

- Mas... a alguns quilômetros daqui encontra-se o Templo da Calma Profunda, dirigido por monjas budistas que costumam dar pousada aos viajantes.

- Então, vamos até lá!

______
Nota:

(1) - 0s psicólogos Schulz e Biswanger provaram cientificamente que, pela imaginação de um fogo, a temperatura do nosso corpo sobe alguns graus. E assim a imaginação age objetivamente, provocando o fenômeno do calor interno ou "turno".


As Monjas do Templo Da Calma Profunda

Cavalgamos através da vasta região montanhosa, desabitada, inexplorada em sua maior parte, varrida pelos ventos. À tardinha chegamos ao templo. Parecia uma flor branca encravada num penhasco. Tivemos certa dificuldade em subir a serra escalavrada.

Chegamos afinal ao pátio do mosteiro. Entramos pelo portal de madeira esculpida de dragões até alcançarmos duas arcadas, unidas no alto por um telhado recurvo, recoberto com telhas de porcelana verde, que rebrilhavam cobertas de neve. Pairava no ar um murmúrio de cânticos parecendo o cântico dos monges gregorianos. No umbral da porta principal, vimos uma grande quantidade de saquinhos de seda colorida, cheios de ervas perfumadas. Estavam pendurados no teto, dentro de grandes balões, feitos de papel de arroz transparente.

E Kazi explicou:

- São ervas sagradas que afastam os malefícios. Antes de serem colocadas nos saquinhos são abençoadas por meio de antigos rituais.

Sentimos no ar um doce aroma de sândalo, misturado com jasmim e heliotrópio. Aqui e além ao passar pelos terraços cobertos, vimos algumas velhas monjas, vestindo longas túnicas azul forte. Uma delas veio ao nosso encontro. Kazi manteve com ela um diálogo em tibetano. Em seguida falou:

- Só há dois quartos disponíveis.

- Não importa - retrucou o Dr. Vessantára - nós ficaremos num e as senhoras no outro. Os criados poderão dormir na cozinha, como é costume aqui no Tibete.

E assim foi.

Fomos conduzidos a uma extensa galeria iluminada por umas estranhas tochas sem fumaça.

- Estas são as tachas das vestais - explicou nosso guia. São feitas com mechas de amianto e ardem inalteráveis durante milênios. No século 18, um grupo de arqueólogos holandeses encontrou aqui no Tibete, entre as ruínas de um templo, duas destas tachas adendo numa tumba subterrânea. Calcularam que deviam estar acesas desde o século III antes de Cristo.

- E onde estão estas tachas? - indaguei.

_ Atualmente estão no Museu de Raridades de Leiden, na Holanda. O fato de que existem estas tochas perenes num Museu da Europa, é uma advertência contra a incredulidade de muitos ocidentais...

No fim da galeria ficavam os dois quartos. Mahima e eu ficamos no último. As paredes eram caiadas de branco. O chão forrado com grossas esteiras de bambu. Num canto uma mesinha baixa com uma estatueta de Gautama, o Buda. Nas duas janelas que davam para o jardim, coberto de neve, viam-se uma cortina de esteirinhas de bambu. Em cima da mesinha vimos uma pequena esfera luminosa, fosforescente, de uma cor verdosa, que aumentou de luminosidade quando a monja pronunciou a palavra "Ram."

- Quando quiserem aumentar a luz, é só pronunciar esta palavra, que é a semente sonora do fogo.

Assim que ela saiu Mahina e eu examinamos detidamente a esfera. Parecia feita de cristal lapidado.

- É interessante como ela obedece à vibração do bija-mantra do fogo! - exclamou Mahima.

Soube então que este "bija-mantra" ou palavra semente do fogo, tem relação com os "tatwas" ou forças sutis da natureza. A vibração destas sementes sonoras vem ter ao plano físico através da Constelação do Cruzeiro do Sul. Existem sete "tatwas" ou forças sutis da natureza, porém só cinco são ativos. Há também uma curiosa correspondência entre os "tatwas" e algumas partes do corpo humano. Por isto os antigos "Rishis" - santos videntes da Índia - idealizaram a Yoga dos Cinco Elementos. Esta Yoga deve ser praticada entre 5,30 e 6,30 da manhã, ou entre 12,30 e 13,30, ou ainda entre 19,30 e 20,30 por serem horas de vibração positiva. O discípulo escolherá um lugar tranquilo, e em pé, com o corpo voltado para o Norte, imagina formas geométricas coloridas que correspondem aos "tatwas" ou forças sutis da Natureza.

Assim, começar mentalizando ou imaginando um grande cubo quadrado que vai das plantas dos pés aos joelhos, e é da cor laranja terrosa. Enquanto está imaginando dirá lentamente a palavra "Lam", que é o bijam ou semente sonora do elemento terra que este quadrado simboliza. Pouco a pouco sentirá que uma vibração muito agradável brota da terra e sobe até os seus joelhos. Deve ficar assim cerca de 10 segundos ou o tempo que puder manter a mentalização. Em seguida, imagina uma Lua Crescente em posição horizontal, apoiada no quadrado. Esta Lua Crescente é de cor violeta e representa o elemento água. Sua semente sonora é a palavra "Vam". A vibração vinda da terra atinge e vibra neste crescente lunar. O discípulo fica mentalizando isto o tempo que puder. Em seguida imagina um triângulo vermelho vivo, tendo a base apoiada na forma anterior da Lua, e a ponta para cima, envolvendo o umbigo, o plexo solar e indo até a ponta do queixo. Baixinho pronuncia a palavra "Ram" que é a semente sonora do fogo. A vibração que vem da terra sobe e penetra neste triângulo vermelho. O discípulo permanece visualizando o tempo que puder. Feito isto, imagina um grande hexágono verde claro, apoiado na ponta do triângulo precedente, indo até a linha das sobrancelhas. A palavra a pronunciar é "Pam" que é a semente sonora do elemento ar. A vibração que vem da terra sobe até este hexágono, levada pelo pensamento do discípulo. Após cerca de 10 segundos, imagina então um outro crescente lunar, em posição vertical do lado esquerdo da cabeça, na cor azul forte. Representa o "akasha" ou éter imponderável. A palavra a ser dita é "Ham" (com h aspirado). A última figura a ser imaginada nesta Yoga dos Cinco Elementos é um grande sol dourado, acima do seu olho direito. Este sol simboliza o plano divino e a palavra é "Om".

Este "Om" é o símbolo universal do infinito. O presente, o passado e o futuro. É, segundo o Upanishad de Manduqui, o mundo interno expresso por uma única sílaba, e ainda tudo que pode existir fora dos mencionados três tempos. Deve ser pronunciado em tom de dó.

________


No dia seguinte após nossa chegada ao Templo da Calma Profunda, os sinos nos despertaram antes do raiar do sol. Sentíamos um grande bem estar ao respirar aquele ar puro como o linho fresco. Todo o ambiente emanava vibrações de bondade e tranquilidade.

Saímos cedo do quarto e após a toalete matinal, fomos conduzidos ao refeitório. Era uma grande sala circular, iluminada por várias janelas. Espalhadas em volta, vimos mesas de pedra, de tampo côncavo. Viam-se sobre as mesas cestas com frutas secas, coalhada e mel. Numa das paredes viam-se pequenas portas de metal, como se fossem portas de fornos. E realmente eram. Uma noviça abriu algumas. Por trás de cada uma vimos uma cavidade contendo uma bandeja grande, cheia de pães escuros e quentinhos. Eram pães de centeio e cevada integral.

Comemos com satisfação e bebemos um chá levemente adocicado, que soubemos ser o famoso chá de raiz de "Ginseng", oriunda da Coreia. Este chá é revitalizante e consta que contém princípios afrodisíacos e rejuvenescedores. Os tibetanos raramente bebem o chá preto. Preferem os chás de ervas naturais como o "ginseng", folhas de artemísia e dente-de-leão, que são muito saborosos.

Após o desjejum fomos conhecer o Templo. Andamos por um pátio amplo, calçado de pedras lisas e redondas. Neste pátio vimos muitas monjas de idades diversas. A maioria vestia a túnica azul forte, mas algumas usavam um hábito branco barrado de azul. Um grupo de crianças brincava no pátio. Soubemos que no convento há uma escola e uma espécie de asilo para crianças abandonadas que as monjas recolhem nas cidades e aldeias mais próximas.

Vimos muitos claustros e capelas com seus deuses estranhos. Num deles havia uma grande janela redonda, que soube ser a janela da Lua Cheia.

Andamos por uma série de pátios internos, cada um deles com outro pátio menor ao centro, separados por filas de grandes colunas de pedra rosada. Afinal, subimos uma velha escada de pedra e fomos dar numa espécie de cela cavada na espessura da rocha. Vimos então um espetáculo curioso. No meio da cela via-se uma fogueira resplandecente que parecia brotar do coração da terra. O fogo girava sobre si mesmo e depois desvanecia-se, deixando atrás de si uma esteira rosada. Perto da fogueira vimos um grupo de monjas vestidas de branco. Ao lado, uma grande cesta contendo muitos hábitos brancos. Pegando nestes hábitos as monjas jogavam-nos dentro do fogo. E... eles não se queimavam! Momentos depois eram retirados, tão alvos e perfeitos como se tivessem sido lavados com água e sabão.

Soubemos então que aquela era chamada a Fonte e o Coração da Vida que pulsa no meio da terra. Banhando seus hábitos naquelas chamas, absorviam-lhes a virtude em toda a força virginal e dela impregnavam seus corpos. Os hábitos eram feitos de um mineral chamado amianto, muito abundante nas montanhas tibetanas. Desse material, as monjas tiravam um fio grosso, semelhante à lã, com o qual teciam seus hábitos. Faziam também um óleo que friccionado no corpo, tornava a pele imune às queimaduras.

Seguindo a noviça, fomos dar num jardim interno. No meio do jardim um lago sereno. Nas margens do lago, lindas flores que pareciam grandes rosas brancas.

- Estas plantas são oriundas dos vales do Himalaia na Índia, e têm a maravilhosa virtude de variar a coloração, segundo a hora do dia, e não parecem mortas mesmo depois de murchas.

O Dr. Vessantára, que conhecia botânica a fundo, examinou a planta detidamente. Logo explicou:

- O nome latino desta planta é "hibiscus mutabili". O sábio Linneu, em sua obra "Botânica Clássica", nos fala de trinta e sete espécies diferentes de hibiscus como estes, cuja semente tem um perfume de almíscar. É uma planta original. (1) De noite as flores fecham-se, mas assim que amanhece elas se entreabrem e parecem rosas brancas. Ao meio-dia começam a ficar rosadas e durante a tarde ficam de um vermelho púrpura muito lindo. Pertencem à família das "malváceas" e soube que os tibetanos consagram-na ao Sol.

Com um gesto gracioso a noviça inclinou-se e colheu duas flores. Entregou uma a Mahima e outra a mim.

Fiquei muito contente com aquele presente inesperado. Ergui a flor e aspirei seu perfume. Era muito suave, adocicado, levemente almiscarado.

Apontando para uma outra flor perto do lago, a monja disse:

- Aquela é a noiva do deus Mahakala. Breve celebraremos o casamento do deus com esta planta. Seu nome é Mandrágora.

- Na minha terra esta planta é a planta dos feiticeiros - exclamou Pierre Julien. No sul da França, os camponeses sabem por tradição o terror que só o nome desta planta despertava em seus antepassados. Para eles a Mandrágora tem algo do ser humano a quem é forçoso render culto.

- Lembro-me - falou Vessantára - que a maior parte dos processos da Inquisição na Espanha, tem como causa as manipulações com a Mandrágora. Contudo, não creio que seja uma planta maléfica.

- Para nós, tibetanos, a Mandrágora não é maléfica - falou o Lama Kazi. Por isto todos os anos em fins de setembro, costumamos celebrar o casamento da Mandrágora com o deus Mahakala. Este deus oriundo da índia representa uma forma de Xiva, na sua função de destruir para renovar. Alguns tibetanos ignorantes consideram Mahakala um espírito daninho.

- Como é o rito deste casamento? - indagamos. – É um costume muito antigo no Tibete. Primeiro as monjas traçam um círculo mágico em volta de todo o jardim. Estes círculos são a firmeza do ritual, são ordens escritas que devem ser obedecidas por uma falange enorme de entidades espirituais. Depois colocam a Mandrágora no meio do círculo. Enquanto isto um Lama vindo de algum templo das redondezas, retira do escrínio a estátua do deus Mahakala, onde fica trancado o ano todo. O casamento começa quando o Lama e uma das noviças seguram, por cima da planta e do deus, um rico xale de musselina bordado a ouro. O Lama recita as orações secretas, enquanto que um grupo de noviças espalham punhados de arroz cru e grãos de açafrão sobre os noivos, isto é, a planta e a estátua do deus. Terminada a cerimônia, o Lama guarda o xale e a estátua é colocada à sombra de sua noiva. As monjas cantam e dançam celebrando as virtudes de um e de outro.

- Qual é o significado desta união? - perguntamos.

- Este rito possui um profundo significado oculto que não podemos revelar... Contudo, dizem nossas tradições que um deus átomo - dorme em cada pedra. Logo, desperta em cada planta. Move-se em cada animal. Pensa em cada homem e ama em cada anjo. Daí concluímos que devemos tratar cada pedra como uma planta. A cada planta como um animal querido. Cada animal como um ser humano e todo ser humano como deus, pois nele vive a centelha divina EU SOU... Eis tudo o que posso dizer...

Continuamos nosso giro pelo Templo da Calma Profunda. Vimos muitas salas, pátios e santuários e ficamos encantados com a limpeza e a ordem de tudo.

Naquela tarde, uma forte tempestade de neve impediu nossa partida. Ficamos contentes por não ter que partir. Sentíamos prazer em prolongar nosso contato com as monjas.

Foi bom termos ficado, porque ficamos conhecendo muitas tradições antigas do Tibete. Entre elas destaca-se a que se refere, ao fabuloso rei Melquisedek.

______
Nota:

(1) - No Jardim Botânico do Rio de Janeiro há um exemplar desta curiosa planta do Himalaia.


O Rei do Mundo e os Misteriosos Reinos Subterrâneos

Conversando com a monja Dolma, Superiora do Templo da Calma Profunda, soubemos o seguinte:

Consta que Melquisedek é uma das entidades mais elevadas na hierarquia dos planos espirituais. Foi rei de Salém, sacerdote do Altíssimo, contemporâneo de Abraão. Não teve pai nem mãe, foi autocriado, nasceu de si mesmo, como uma das poderosas manifestações de Deus na terra. Juntamente com outros Mestres Ascensionados ele dirige a evolução na terra e seus grandes movimentos políticos, artísticos e religiosos. O título de Rei do Mundo significa o Legislador Primordial. Vive ele na cidade subterrânea de "Paradesha" ou centro do mundo. Os que vivem ali são sempre jovens e sadios. Têm um adiantamento espiritual tão grande que não devem mais reencarnar sobre a terra. Num futuro remoto eles sairão de suas cidades subterrâneas e aparecerão para salvar a humanidade.

Os reinos subterrâneos ficam no interior oco da terra. Os Pólos não existem. Há aberturas nas extremidades Norte e Sul. No interior encontram-se vastos continentes, oceanos, montanhas e rios. Existe uma vida vegetal e animal nestes mundos subterrâneos que são povoados por uma raça desconhecida dos habitantes da superfície. (1)

Os construtores destes reinos subterrâneos, como a maior parte dos seus habitantes, pertencem a uma raça antediluviana que povoava os continentes da Lemúria e da Atlântida. Quando estes continentes foram engolidos por um terrível cataclismo, os sobre,viventes procuraram refúgio no seio da terra, penetrando aí através das aberturas polares a bordo de seus carros celestiais ou "vimanas". Voavam a bordo destes engenhos que utilizavam uma forma de energia obtida diretamente do ar chamada "Prana". Desde então muitos destes carros celestes têm circulado na atmosfera interior da terra.

Paradeshi é também chamada de Agharta por muitos budistas. Este império misterioso tem milhões de habitantes e numerosas cidades. A capital é Shamballah, onde reina o Governante Supremo, cujo representante terrestre é o Dalai Lama. Suas ordens são transmitidas através de túneis secretos que ligam o mundo subterrâneo com o Tibete. Existem túneis semelhantes no país do "O Fu Sang" (Brasil). O Brasil e o Tibete parecem ser as duas partes do mundo onde os contatos com Agartha podem ser feitos mais facilmente. (2)

As tradições budistas dizem que Agartha surgiu, há muitos milhares de anos, quando um homem santo Guesar de Ling, à frente de uma tribo das planícies de Tchang, foi para o Norte, penetrou nas entranhas da terra e desapareceu para sempre. O Norte é tido como a direção mística e muitos livros da Índia e do Tibete dizem que "os caminhos do Norte conduzem o yogue à libertação suprema".

O Rei do Mundo já foi visto durante as festas solenes do antigo budismo no Sião e nas Índias, onde já apareceu cinco vezes. Veio num carro magnífico puxado por elefantes brancos. Usava uma túnica e um manto de seda branca e trazia na cabeça uma tiara vermelha de onde pendiam muitos fios de diamantes que lhe ocultavam o rosto. Abençoou o povo com uma maçã de ouro em que se assentava um cordeiro. Os cegos recuperaram a vista, os surdos ouviram, os doentes se curaram e os mortos erguiam-se dos túmulos à medida que neles pousavam os olhos do Rei do Mundo.

Em Agartha, os sábios registram em placas de pedra todas as ciências do nosso planeta e dos outros mundos. Os budistas chineses sabem disto. Diz a lenda que uma vez em cada século os sábios da China reúnem-se em segredo num lugar perto do mar. Então, cem tartarugas gigantes saem do oceano e os sábios gravam-lhes no dorso as conclusões da ciência divina do seu século.

O Dalai Lama enviou embaixadores ao Rei do Mundo, mas eles não conseguiram descobrir a entrada para os reinos subterrâneos. Dizem que um chefe tibetano, depois de uma batalha com os Olets encontrou-se diante de uma caverna cuja entrada tinha a seguinte inscrição:

"Esta porta conduz à Agharta!"

Da caverna saiu um homem de aparência bela que lhe deu uma placa de ouro com estranhas inscrições que diziam: "O Rei do Mundo" aparecerá a todos os homens quando chegar o tempo da guerra do bem contra o mal. Mas este tempo ainda não chegou. Os piores membros da raça humana ainda não nasceram".

Todo este relato sobre o rei do Mundo e os misteriosos reinos subterrâneos deixaram-me perplexa.

Acho difícil admitir a existência de mundos subterrâneos habitados por pessoas iguais a nós. Acredito porém que pode ser uma raça de super-homens, com corpos fluídicos feitos de células diferentes das nossas.

Durante o tempo que passamos com as monjas do Templo da Calma Profunda, aprendemos muitas coisas surpreendentes. Aliás, parodiando o sábio Louis Jacolliot podemos dizer: "presenciamos coisas que não nos atrevemos a relatar, por temor de que nossos leitores riam de nós e duvidem da nossa razão ou da nossa boa fé, não obstante serem certas todas as coisas que vimos..."

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Nota:

(1) - O primeiro ocidental a apresentar a teoria da Terra oca com aberturas nos Pólos foi um pensador americano, William Reed, autor do livro "Fantasma dos Polos", publicado em 1906. Essa obra fornece a primeira compilação de provas científicas baseadas nos relatos dos exploradores árticos.

2) Reed observou que a terra não é uma verdadeira esfera, mas achatada nos Polos, ou melhor: que começa a achatar-se logo que nos aproximamos dos hipotéticos Polos Norte e Sul. Os Polos estão entre o céu e a terra no centro das aberturas polares, e não na superfície. Raymond Bernard em seu livro "The Hollow Earth" ou A Terra é Oca, diz o mesmo, apoiado em documentos dignos de todo o crédito.

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