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A HIERARQUIA, OS ANJOS SOLARES E A HUMANIDADE


Capítulo IX

O HOMEM NO DEVACHAN

A Lei Periódica dos Ciclos

Fomos instruídos durante algum tempo sobre a atividade da Lei Cíclica da Natureza ou, tal como é definida atualmente, Lei dos Ciclos. Esotericamente compreendida, essa Lei refere-se ao Alento de Deus, à Sua Respiração Vital cujo fluxo e refluxo, isto é, inalação, exalação e seus intervalos ou pausas naturais, produzem a Vida do Universo e de tudo quanto "nele vive, move-se e tem o ser". A ordem dos ciclos é regular e periódica e tem como trajetória ou campo de expansão a forma circular, daí a esfericidade do conjunto universal, desde o átomo até o Sol, moldado e sustentado pelo Alento de Deus. Por analogia, circular e periódica é também toda atividade realizada no interior dessa vastíssima esfera do Universo.

Durante o processo de ensinamento da Lei dos Ciclos, que abrangia extremos tão importantes quanto a atividade cíclica e periódica dos Sete Raios, o estudo das Constelações Siderais, a estruturação do Plano de Evolução Planetária por parte da Hierarquia, a missão específica dos Anjos Solares, a projeção em nosso planeta de energias e radiações potentíssimas procedentes de outros Universos, de outros planetas do Sistema, de outras estrelas e mesmo de outras galáxias, o significado específico daquele estado de consciência que os esotéricos chamam Devachan, o estudo das Leis Soberanas que regem o processo de vida e morte, de luz e sombra, de noite e dia, de morte e nascimento e ainda o contato fugaz, apesar de intensamente profundo, com o trabalho regulador da Lei de Causa e de Efeito por parte daquelas gloriosas e ao mesmo tempo misteriosas Entidades Cósmicas conhecidas pelo nome de "Senhores do Karma" etc., tivemos oportunidade de nos colocar em contato com a Obra Divina em diversas dimensões e centros de atividade. Esse processo de ensinamento, novíssimo no que se refere ao treinamento espiritual do discípulo, teve sua consequência imediata em nossas existências físicas e muito especificamente no ritmo de nossas respirações. Estas tornavam-se cada vez mais "automáticas", empregando aqui uma expressão muito concreta, pois reproduzíamos espontaneamente em nossas visas muitos dos aspectos rítmicos e cíclicos que estávamos estudando espiritualmente. Aprendíamos a respirar de fato segundo o ritmo cíclico de toda a Natureza. Durante o período diário de Sol, a respiração era mais profunda e constante. Também se faziam mais prolongados os intervalos entre inalação e exalação. Durante a aurora e o crepúsculo, a respiração tornava-se doce, mansa e repousada, sendo menores os intervalos. Essa nova fase de nossa função respiratória chegou até nós, conforme disse anteriormente, de modo espontâneo, sem necessidade de praticar nenhum gênero de ioga, como a expressão natural do reconhecimento interno de uma Lei que até então havia passado quase que despercebida ante nossas percepções.

As consequências desse novo processo de respiração foram evidentes desde o início: melhor circulação da corrente sanguínea, concentração mental mais profunda e um maior poder coordenador das ideias e emoções. Então nos demos conta do aspecto prático do reconhecimento interno de certas verdades espirituais, assim como da atividade das Leis Divinas operantes na natureza humana quando essa natureza, encarnada em um dos veículos periódicos de manifestação, deixa de opor resistência ao impulso sagrado da Grande Lei Reguladora dos Ciclos. Logicamente o homem não respira porque essa seja a sua vontade, mas sim porque a isso o obriga, como base de toda a sua evolução possível, a Lei Universal dos Ciclos ou de Respiração do Senhor do Universo.

Quando o homem é tremendamente instintivo ou egoísta, não pode respirar corretamente porque as correntes mentais e emocionais que coloca em atividade criam uma barreira de resistência aos efeitos renovadores e purificadores da Lei cíclica natural. Um homem sereno, tranquilo e altruísta respira mais ampla, profunda e adequadamente porque não oferece tanta resistência, mesmo dentro de suas limitações kármicas, à Lei ordenadora dos Ciclos. Mas, quando o homem é profundamente investigador, como todo verdadeiro aspirante espiritual deve sê-lo, e excede certa medida no esquema interno, ajustando-se a determinadas regras espirituais e sociais, conhece então as delícias do respirar corretamente. Sem que perceba isso, deixa seu arbítrio nas mãos das Forças Criadoras da Natureza e permite que a Lei dos Ciclos, sabiamente dirigida pelos Senhores do Karma, molde-o segundo Arquétipos humanos de ordem superior.

A Lei dos Ciclos e o Devachan

O que exatamente é o Devachan? O Devachan é um estado peculiar de consciência do ser humano que se desenvolve durante aquela pausa ou intervalo de descanso compreendido entre duas existências terrestres. Vem a ser como uma avenida ampla e resplandecente que se estende desde o processo da morte até o de um novo nascimento, enchendo a visão e a vida do homem com "perspectivas agradáveis bordadas com crepúsculos de sonho". As delícias desse estado de consciência evidentemente não podem ser analisadas através da mente intelectual; é necessário elevar-se ao nível da ideação mais seleta e exaltada e, ainda assim, sempre teria que se contar com a desvantagem suposta pelo ter que utilizar aqueles materiais frequentemente toscos com que nossa imaginação trata de refletir as visões espirituais superiores.

Assim sendo, as características do Devachan são análogas, ainda que dentro da limitação da consciência do homem, às daquele Estado de Consciência Divina esotericamente denominado "Grande Pralaya". O Grande Pralaya é um período imenso de solidão logoica, para nós indescritível, que se estende do fim de um Universo até o nascimento de outro; é um intervalo natural ou pausa necessária para descanso entre duas Respirações Solares ativas. A analogia entre o macrocosmo e o microcosmo aqui, como em todos os casos, é perfeita e, estudando certos aspectos definidos do Devachan tal como o faremos, talvez tenhamos um vislumbre do que ocorre na Consciência Divina durante a evolução do indescritível sonho em Pralaya em que "...Brahma dorme... depois de um dia universal ativo", frase védica que expressa de modo simbólico uma das grandes verdades universais que o discípulo em treinamento iniciático deve aprender.

O ensinamento religioso ocidental, profundamente marcado pelo Cristianismo, dá ao Devachan o nome de "Céu". Considera-o um "lugar de paz, harmonia e segurança absolutas, onde o homem bom entra, depois do processo da morte... como prêmio por sua conduta correta na vida... Anjos e Serafins velam por ele para sempre...". Em todo caso, o Céu cristão tem um caráter muito limitado, já que Nele só podem entrar os que foram bons na vida e se ajustaram inteiramente aos ensinamentos religiosos do Cristianismo. Os demais homens - e os senhores concordarão comigo que é a maior parte da humanidade - ficam automaticamente excluídos desse lugar de delícias, chegando-se com esse conceito limitado à mais estúpida e, ao mesmo tempo, injusta arbitrariedade quanto ao ser humano, evidenciando-se, por outro lado, quão pouco profundamente foram investigados os Mistérios da Divindade -sempre transbordante de infinita Compaixão e Sabedoria - tal como subjazem no profundo e esotérico do verdadeiro Cristianismo. Antes de mais nada, é preciso salientar que o Devachan ou Céu - se os senhores preferem esse nome - não é um "lugar", mas sim um "estado de consciência". Nossos irmãos orientais, que investigam as leis soberanas que regem a vida mais profundamente do que talvez nós o temos feito, entenderam desde a mais remota antiguidade que o processo da vida e da morte e os intervalos entre existências terrestres estavam relacionados com a Respiração Divina, fazendo parte consubstancial Dela e refletindo a todo momento aquele sagrado impulso vital que cria, vivifica e sustenta os Universos. Portanto, o Devachan é "algo vivo", é um estado de consciência criado, vivificado e sustentado pelo homem após ele ter passado pelo transe da morte física e de ter se liberado do aspecto grosseiro de seus veículos mais sutis, o astral e o mental. Uma vez que o homem tenha restituído à Natureza aquela matéria com que "se envolveu misticamente" e com que criou seus corpos de manifestação e tão logo tenha se desprendido de todas as suas ataduras mentais, astrais e etéricas provenientes da aparência física que tinha no mundo, cumprido "um ciclo de atividade", gradualmente entra num ciclo de repouso, se é que se pode chamar de "repouso" aquela atividade misteriosa e dinâmica que surge resplandecente e sem esforço algum do profundo do ser humano quando ele libertou-se dos últimos vestígios da matéria "animalizada" que o ligam à Terra e da recordação viva de sua última existência kármica.

O Devachan está localizado em determinado estrato ou nível do Plano Mental. A matéria sutil que o condiciona é de natureza tal que permite ao ser humano converter em "realidade" qualquer desejo, aspiração ou pensamento formulados ou mantidos. Existe uma exteriorização ou projeção constante dos elementos mais sutis que promove o desejo, pois, no Devachan, pensar, desejar ou idear são sinônimos de "viver", estando implícita, no caráter especial dessa vivência, a permanente maravilha do processo evolutivo do Reino Humano.

Sendo assim, o que o homem deseja, projeta, pensa e vive no Devachan são precisamente todos aqueles acontecimentos, experiências, situações e circunstâncias que não puderam ser exteriorizadas ou objetivadas no Plano Físico durante a existência terrestre.

Portanto, o Devachan é o plano de consumação total dos maiores anseios do homem, os que motivaram vazios em sua existência ou que desapareceram em profundas inquietudes e aflições. O Devachan, na realidade, é um verdadeiro Céu, não de contemplação eterna e passiva, mas da mais dinâmica atividade e realização criadora. No Devachan, onde se amplia até o infinito a potencialidade do desejo humano e de seu centro vital fecundado pela faculdade criadora do próprio Deus, o homem extrai aquele poder infinito que o eleva aos mais altos picos e às situações mais esplêndidas.

O homem, colocado no centro vital de si mesmo sem qualquer limitação de suas capacidades inatas criadoras, começa a viver por antecipação a glória da Liberação. No Devachan, o Karma não afeta o ser humano. Ali ele vive uma vida muito parecida com a dos Devas, ainda que de outra forma, mas a analogia é perfeita no sentido de que não há esforço algum por parte dele. Liberado da necessidade kármica, mesmo que apenas temporariamente, o ser humano vive mais próximo de si mesmo e da Graça Divina como nunca antes. No Devachan está sua Glória imediata, o máximo poder ao seu alcance e o ponto mais elevado de sua união e contato com o Ser Supremo.

O Devachan humano, visto nos confins imensos e indescritíveis do Plano Mental, aparece como uma esfera luminosa de diversas dimensões e cores. No interior dessa esfera, um ponto ainda mais brilhante indica o centro de consciência. Esse centro, misticamente unido com o Anjo Solar, contém a garantia do essencial e o poder criador que promove todas as situações devachânicas, sendo arquivo das experiências de consumação, base de toda evolução futura.

O Devachan oferece, portanto, uma perspectiva de vida intensa, vigorosa e palpitante. Tem uma riqueza de matizes impossível de descrever pela intensidade dos sentimentos com que são ornadas as "cenas devachânicas" criadas pela consciência humana em processo de consumação.

Treinamento Devachânico

Entrar no âmbito ou esfera onde se realizam essas cenas e criam-se essas situações que exigem do investigador que silencie completamente todas suas singularidades pessoais e, particularmente, que tenha um grande controle mental e emocional a fim de não perturbar a "atividade liberadora" das energias mentais e psíquicas que acontece no mundo devachânico. Da mesma maneira que um globo de ar desincha sob a pressão contundente de uma agulha, a esfera devachânica perderia todo seu ar de integridade purificadora se qualquer intruso conseguisse penetrar na intimidade dessa esfera radiante, criada pela intensidade dos desejos e pela ânsia inefável de liberar-se deles. Por esse motivo, antes de realizar as experiências devachânicas, alguns detalhes das quais terei muito prazer em lhes relatar, tivemos que nos submeter a uma rigorosa disciplina mental e emocional. Alguns desses processos internos consistiam na representação de "quadros mentais", uns extremamente divertidos, outros profundamente dolorosos, que o Mestre fazia desfilar pela nossa imaginação, mas que apareciam com maior intensidade de realidade do que os próprios acontecimentos do Plano Físico. O objetivo era atingir a perfeita "impassibilidade" perante cada um dos quadros ou cenas mentais que o Mestre produzia e projetava em nosso corpo mental. Confesso que ri e chorei muito e que minha curiosidade acendeu-se extraordinariamente ante uma cena truncada em sua fase mais interessante antes que o Mestre considerasse que eu estava apto para empreender a grande experiência do Devachan. Suponho que o mesmo ocorria, mais ou menos acentuadamente, com meus irmãos de grupo. Contudo, como os senhores compreenderão, estávamos lá para isso, para aprender a governar nossos impulsos e nossas emoções pessoais e para, cada vez mais seguros de nós mesmos, situarmo-nos perante uma série de acontecimentos que exigiriam de nós a mais completa impassibilidade e a maior das discrições.

As experiências devachânicas começaram uns meses após o início do treinamento especial a que havíamos sido submetidos. Afável, infatigável e indescritivelmente paciente, o Mestre foi nos instruindo sobre as bases seguras de controle de nós mesmos nos Planos sutis antes de nos considerar preparados para empreendermos a grande aventura do Devachan. As experiências sempre tiveram nosso Ashram como centro de partida e fomos constantemente dirigidos pelo Mestre em cada uma das "incursões devachânicas". A experiência em si tinha um caráter realmente excitante, pois se tratava de ver o homem como realmente era em sua vida oculta, em sua verdadeira intimidade, naquela vida profundamente secreta e recatada que está na raiz de todos seus sonhos, anseios e aspirações. E o resultado do nosso contato com o mundo devachânico, com o Céu sonhado e antevisto por todos e cada um dos seres humanos, foi realmente instrutivo.

Experiências no Devachan

Irei relatar-lhes em seguida algumas experiências devachânicas, mas, antes de fazê-lo, gostaria de ressaltar que elas expressam unicamente cenas ou quadros mentais captados em um determinado momento cíclico, neste caso o da nossa percepção. O processo devachânico de qualquer ser humano pode estar repleto de muitas dessas cenas vivas que não são senão expressões dos desejos, sonhos e aspirações que não puderam ser devidamente cumpridos nem realizados durante o processo kármico da vida física.

Devo também salientar que, mesmo que cite a "idade" aparente de algumas pessoas que foram contatadas no Devachan, não quero dizer com isso que a "idade" tenha alguma importância nesse Plano. Entendam que, no Devachan, a "idade" é forjada pela mente, ainda sutilmente ligada com o aspecto tempo e seguindo o traçado da memória viva de um fato particular ou de uma época claramente definida, evocada do propósito vital das memórias humanas que, por suas características especiais, para o homem contém um estímulo claro e forte.

Nossa primeira experiência devachânica teve, como ponto de convergência, a pequena esfera mental de um homem primitivo, um selvagem da África equatorial. Na reduzida esfera de seus sonhos, toda sua atividade circunscrevia-se à caça, à pesca, uma vida aparentemente muito solitária na selva, mas, coisa curiosa, quando caçava ou quando se dedicava à pesca, ele o fazia com habilidade realmente extraordinária. Essa capacidade ou habilidade evidente era, parece, um de seus sonhos mais acalentados, um dos desejos intensos que estava realizando na ação mental daquela cena. No limite de seus sonhos, não havia mulher alguma nem tampouco outros silvícolas; aquele homem primitivo parecia completamente só. Naqueles momentos, revelava-se no interior de sua consciência íntima "algo" que realmente constituiu um autêntico desejo premente de sua vida passada, um potente sonho que ele agora "revivia" dentro das fronteiras de sua consciência com os mais excitantes e vivos aspectos de realidade. A Lei Cíclica, ordenadora de todo processo do que é criado, estendia-se à sua frente como um panorama de tudo que sempre procurou viver ou realizar sem ter conseguido plenamente. Portanto. estava "consumando seus desejos", liberando o caudal de energia de seus sonhos, o que lhe permitiria voltar em um futuro não muito remoto, dado o reduzido de sua esfera devachânica, ao Plano da existência física com outra classe de sonhos e desejos, os verdadeiros promotores da evolução da entidade humana.

Entre várias, outra esfera devachânica que o Mestre convidou-nos a penetrar foi a de um homem que, no panorama de seus sonhos, aparecia como uma pessoa muito ativa, que caminhava rapidamente pelas ruas, de vez em quando entrava em algumas tavernas, bebia, saía de novo e finalmente entrava em uma casa onde o esperava uma jovem muito graciosa, que o abraçava e seguidamente lhe oferecia de comer e de beber, mas nunca sem deixar de acariciá-lo ternamente e de cumulá-lo de atenções. O lugar, o espaço daquele quadro vivo, muitas vezes repetido com diversas variantes, era muito semelhante àquelas cidades inglesas que Charles Dickens descreve em alguns de seus contos, a data das cenas e das pessoas que reluziam na moldura dos sonhos daquele homem, cuja idade aparente era a de uns quarenta e três anos, era, talvez, do final do século XVII ou princípio do século XVIII. Andava elegantíssimo e, ao mesmo tempo, extravagantemente vestido, em contraste com a humildade das vestimentas das outras pessoas que se manifestavam em seu quadro devachânico, inclusive aquela jovem que parecia ser o centro focal e objetivo final de todo o processo de ideação ou projeção de cada um dos quadros mentais que nos era permitido perceber.

Ao chegarmos ao Ashram, quer dizer, ao nos tornarmos conscientes do Ashram, após subtrairmos a consciência do Devachan, o Mestre nos permitiu ver através da luz astral que se filtrava dos Registros Akáshicos, ou Memória Eterna da Natureza, o verdadeiro quadro do que foi a vida daquele homem. Em primeiro lugar, aparecia como. um vagabundo, andrajosamente vestido e ainda coxo, que pedia esmolas pelas ruas daquela cidade anteriormente descrita e que não diferia muito do quadro devachânico que havíamos presenciado. Víamos como entrava em uma taverna e como lhe retiravam de lá de modo violento por, ao que parece, não ter como pagar. Finalmente, vimo-lo encarapitado numa janela, mas tão estreita que mais parecia uma fenda de uma casa muito triste e miserável, contemplando dali outra casa que, através da janela, podíamos ver uma jovem graciosa, não tanto, ainda que muito parecida, quanto a do sonho devachânico, que ia e vinha fazendo as tarefas próprias da casa e, de vez em quando, detendo-se para abraçar docemente um homem sentado à mesa que, ao que parece, era seu marido. Então tinham uma explicação lógica as cenas que se reproduziam quase que ininterruptamente e com muito poucas variantes no interior daquela esfera devachânica em que o homem em questão alinhavava com os materiais daquilo que nunca pôde ter nem alcançar: rapidez no andar, roupas decentes, contato de amizade com outros, dinheiro com que pagar alguma bebida moderada em algum momento de solidão, angústia ou sofrimento e, principalmente, a ternura de uma mulher amorosa que o acariciasse em seus momentos de solidão e tristeza profundas. Também aqui a Lei Ordenadora dos Ciclos revelava-se com a mesma potência que no caso do selvagem, variando apenas os ornamentos, esses enfeites sempre melhores que os reais que a mente fabrica com a matéria etérica dos sonhos e da intensidade dos desejos. Nesse caso concreto, a esfera desses sonhos de realização devachânica era muito maior do que no caso anterior, mas o processo de ordenação era o mesmo e idêntica era a finalidade: consumar um ciclo de força engendrado pelo desejo e abrir uma nova via natural para outra oportunidade de existência humana.

Outra esfera devachânica em que pudemos penetrar, particularmente interessante sob o ponto de vista da imaginação criadora pela profusão de elegância, beleza e colorido, foi a fabricada, com a potencialidade dos desejos e sentimentos, por uma senhora que, por seus vestidos elegantes e pelo conjunto ambiental que a cercava, deu-nos imediatamente a impressão de que tinha deixado o corpo físico não havia muitos anos. Tudo naquele mundo de ilusões douradas denotava extraordinária beleza e uma profunda sensibilidade que penetrava, por assim dizer, em nosso ânimo e assim fazia com que participássemos diretamente dos "sonhos" daquela senhora. O que mais nos chamou a atenção naquele extraordinário conjunto de ilusões devachânicas que, no entanto, aparecia como um quadro da maior realidade para nós, foi um jovem sentado em frente a um magnífico piano de cauda, de onde tirava notas delicadíssimas. O piano estava no centro de um grande salão repleto de espelhos e de cortinados vermelhos, cheio de pessoas de ambos os sexos, vestidas com muita elegância e que pareciam estar absorvidas na audição do recital do jovem pianista. As paredes eram profusamente decoradas com belos quadros, suas molduras douradas dando uma nota de delicado realce àqueles quadros que pareciam pintados a óleo, ainda que com matizes de realidade tais que parecia que as pessoas e imagens que representavam estavam vivas no interior de suas respectivas molduras. Em outra fase do nosso contato com aquele sonho devachânico, sempre acompanhando aquela dama, que não só aparecia elegantemente vestida e com jóias valiosas, como também era extraordinariamente bela (o sonho dourado de toda mulher), entramos em outro salão, decorado de modo diferente que o anterior. O conjunto aparecia em um delicado tom de azul, cada objeto tendo ali uma excepcional harmonia: cortinas, quadros, vasos de porcelana, pequenas esculturas de marfim, mármore ou alabastro. Através de grandes janelas, via-se um jardim frondoso e exuberante cheio de flores de cores diversas e delicadas. Não deixei de perguntar-me até onde pode chegar a imaginação do ser humano insuflado, como aquela senhora, dos atributos criadores da Divindade. A esfera em que se "movia" era extraordinariamente extensa, o âmbito cíclico que "percorria", levada pelo impulso criador de seus sonhos e idéias, tinha um colorido e uma dimensão admiráveis e, ao que parecia, devido à profusão de imagens e situações e ao grande raio que condicionava essa esfera devachânica, aquela existência ideal perduraria muito ainda, já que o tempo é o aliado da consumação kármica, sendo precisamente isso o que aquela senhora estava realizando no âmago de sua consciência: consumando seus desejos da forma mais sublime e idealizada ao seu alcance. Por outro lado, ela aparecia no centro mágico de toda a sua esfera devachânica como uma Alma extraordinariamente sensível, pura e altamente evoluída. Conscientes dessa realidade e querendo nos aprofundar esotericamente no processo daquela existência devachânica, quando "tomamos consciência de nosso Ashram", perguntamos ao Mestre como era possível que uma Alma tão refinada e harmonicamente evoluída, como parecia ser aquela senhora, estivesse encerrada no ambiente devachânico, excepcionalmente delicioso e até sublime, mas, enfim, um sonho criado com os elementos do desejo. Por favor, vejam a seguir a resposta do Mestre.

A Vida é Sonho
(Calderón de la Barca) (1)

"Toda vida é um sonho, meus amigos. Se puderdes atingir a compreensão disso, o Universo também é um sonho, o Sonho do próprio Deus. O despertar desse Sonho — após o desaparecimento de um Universo objetivo — é a abertura de outro Sonho nos indescritíveis vácuos do Grande Pralaya, mas ainda muito mais vívido do que o que deu vida ao Universo anterior. Quanto ao homem, o despertar do `sonho da existência física', depois do fenômeno da morte, origina o Devachan, o Céu infinito e ilimitado dos sonhos que não puderam ser realizados na vida terrestre. O mundo do Devachan, criado com a substância dos melhores e mais elevados sonhos do homem, tem uma realidade mais profunda que o mundo físico, porque os materiais empregados na sua elaboração são mais nobres e permanentes e a perspectiva ou espaço onde se materializam é maior e mais perfeita. Assim sendo, a todo momento deveis ter presente que isso redundará em uma compreensão maior do verdadeiro significado do Devachan no processo evolutivo do homem, que corresponde a uma maior intensidade e pureza dos sonhos, ou dos desejos que os tornam possíveis, um ciclo menor de `percurso devachânico', uma menor extensão de tempo, se é que posso empregar esse termo para determinar um lugar que, por suas características, `está além e acima do conceito de tempo' tal como este é entendido atualmente. Com essas palavras, quero indicar-lhes um dos princípios que participam na expressão do Devachan: a intensidade de um sonho é o fator de uma consumação mais rápida.

"Na esfera devachânica de uma pessoa primitiva, dá-se o mesmo efeito, ainda que por causas diferentes: a exiguidade da esfera onde suas capacidades de ideação se exteriorizam e a qualidade limitada dos desejos, dirigidos principalmente para a satisfação das necessidades imediatas prementes.

"Também influi no processo devachânico a `idade' que a pessoa tinha quando deixou o corpo físico. A razão é óbvia e ser-vos-á muito fácil compreendê-la. Uma existência física muito prolongada situa, perante a percepção e consideração de uma pessoa, `uma quantidade maior de coisas, fatos e experiências', ou seja, uma quantidade maior de estímulos e incentivos do desejo e, se essa pessoa é do tipo muito comum, o que quer dizer que ainda não estabeleceu contato com os aspectos superiores ou espirituais da vida, cria em sua consciência um ciclo ou percurso de desejos não consumados muito maior do que o de outro homem que tenha preenchido sua vida com ideais mais nobres e puros. "Como dado ilustrativo sobre a experiência devachânica daquela senhora que acabamos de contatar, devo dizer-vos que, em sua existência física, de modo algum ela pertenceu ao que na linguagem profana denominais `alta sociedade'. Pelo contrário, sua vida teve um caráter muito humilde, foi dama de companhia de uma senhora de alta linhagem, porém dotada de uma grande imaginação e de extraordinária sensibilidade. Sempre havia sonhado viver como sua aquela vida de luxo refinado e de ética artística que o contato com a sociedade em que teve que desenvolver-se, apesar da humildade de seu nascimento, a havia predisposto desde a sua mais tenra infância. Contudo, posso dizer-vos, pois isso esclarecerá o gosto refinado com que as imagens de seus sonhos devachânicos eram criadas, que sua ética interior e a elevação de suas aspirações eram extraordinariamente superiores às da senhora que, por motivos kármicos, viu-se obrigada a servir."

Essas foram as explicações do Mestre, como sempre muito simples, mas que esclareciam nossas menores dúvidas sobre o tema que havíamos Lhe perguntado. Também foi muito interessante o caso de uma monja que falecera ainda muito jovem; por sua aparência, uns trinta anos. Rodeada de filhos, seus filhos no Devachan, pelo menos no momento cíclico em que a estávamos observando, não tinha apenas visões místicas ou religiosas e, na maioria dos "quadros mentais" que projetava no interior de sua esfera devachânica, demonstrou-nos qual havia sido "a verdadeira vocação de sua vida", uma casa com marido e filhos e não a vida monástica ou conventual que, talvez por engano, tinha levado em sua existência terrestre.

Será que tinha realmente se equivocado? Quem pode julgar os atos dos outros e dizer "isto está bem" ou "isto está mal"? Sendo a vida humana regida por necessidades imperiosas da Vida Cósmica e expressa através da Lei Periódica dos Ciclos, é difícil, para não dizer impossível, estar-se seguro de acertar ou de errar. Na
maioria das vezes, o que aparece perante nossos olhos como "um erro" pode ser um acerto e o acerto, por vezes, pode aparecer corno um erro. Por essa razão, uma das regras básicas do discípulo no Ashram é a de "suspender o julgamento" diante de qualquer fato ou acontecimento. Frente à realidade interior, que está além dos erros e dos acertos dos mortais, a vida rege-se pela Lei da Oportunidade Cíclica, sendo essa Oportunidade, inteligentemente manipulada pelos Senhores do karma, a que cria, ordena e cumpre o destino de todos e de cada um dos seres humanos.

O Devachan de um Discípulo

Sempre sob a hábil direção do Mestre, fomos penetrando em zonas cada vez mais profundas e significativas do Devachan, conscientizando-nos das implicações do desejo como verdadeiro promotor da evolução de todos os Reinos da Natureza, já que, na raiz de cada um dos elementos constituintes de cada Reino, sempre subjaz um Sonho de Deus. Posso assegurar-lhes que a experiência devachânica me "marcou para sempre com fulgores de Eternidade", pois me foi possível perceber, ao menos fugazmente, as indescritíveis profundezas humanas que contêm o verdadeiro fundamento da manifestação da vida. À medida que penetrávamos nessas insuspeitadas regiões devachânicas ou celestes, víamos, em seus aspectos mais tangíveis, a verdadeira dimensão do coração humano, participávamos de suas alegrias, de seus infinitos anseios de paz, dos intensos desejos de reparar certas atitudes tomadas na vida terrestre mediante um sincero ato de contrição, de mitigar dores ou aflições em si mesmo e nos demais, como também, em outros casos, da sagrada intenção de expressar plenamente todos aqueles aspectos da vida anterior que não puderam ser adequadamente desenvolvidos ou totalmente satisfeitos.

Assim, gradualmente nos aprofundamos em esferas de ideais elevados em função de grandes sonhos, tanto artísticos quanto religiosos, tanto filosóficos quanto científicos. Descobrimos zonas de atividade devachânica que realmente pareciam aquilo que, desde a nossa mais tenra infância, considerávamos o Céu e coloríamos com nossas ilusões puras, e nos identificamos com estados de consciência realmente elevados.

Em certa ocasião, quase no final do nosso processo de treinamento devachânico, penetramos no estado de consciência de um discípulo espiritual. Essa esfera era tão ampla, luminosa e profunda que parecia, mais que um sonho humano, uma realidade do próprio Deus. Era realmente intensa a vibração proveniente da ideação de um mundo melhor para a humanidade, regido pelos mais elevados cânones de beleza, equidade e justiça. O Mestre nos disse que o Devachan desse discípulo seria muito curto, principalmente devido ao fato de sua consciência participar, mesmo no Devachan, do ensinamento sagrado de seu Mentor Espiritual. Como o Mestre oportunamente nos indicou, suas ideações eram, mais que um sonho, um vislumbre da Realidade Espiritual da Humanidade em um próximo ciclo de evolução que aquele discípulo já havia intuído por sutileza mental durante o doloroso processo de sua vida física passada. Esse foi o único caso de um verdadeiro discípulo mundial que pudemos contatar durante a nossa aventura devachânica. O Mestre disse-nos também que, conforme a consciência do discípulo avança para aquele processo de Vida Iniciática encarnando algum Arquétipo superior definido, seus desejos se convertem em poderosa vontade de ação e ele aproveita a oportunidade de vida devachânica para contribuir para o desenvolvimento e expressão daqueles Arquétipos na consciência da Humanidade.

Essa lição foi confirmada posteriormente pelo Mestre em outras conversas mantidas no Ashram. Posso dizer-lhes que a base principal desses ensinamentos foi de preparação para a nossa futura vida devachânica, pois, como dizia o Mestre, "...a recompensa do discípulo encontra-se somente no Devachan", já que essa recompensa não é apenas de paz, serenidade e recolhimento místico, mas também da mais dinâmica e potente ideação criadora. Enquanto este mundo ainda se faz necessário para o discípulo, mesmo no Devachan, ainda há um misterioso contato com o Mestre e o Ashram, quer seja para ativar alguma qualidade latente, quer seja para desenvolver determinadas capacidades de serviço para o futuro. Durante o processo de vida devachânica, a Alma do discípulo, o Anjo Solar de sua vida, está "mais profundamente atenta e consciente da atividade de seu reflexo no Plano Mental do que nunca" e, mesmo que o processo em questão seja muito breve para o discípulo, cada uma de suas expressões contém aquela chama eterna que enaltece, purifica e dignifica. O Caminho da Iniciação se ilumina e se molda por antecipação, aquele gênero de vida que um verdadeiro Iniciado, um perfeito filho de Deus, há de levar.

Considerações Esotéricas

Seriam muitos e variados os quadros retirados de minhas experiências devachânicas que eu poderia submeter à sua amável consideração. Mas compreendam, por favor, que não cuido de entretê-los com esses relatos que, apesar de muito interessantes, são somente pontos de interesse para que nos aprofundemos em Leis e Princípios comumentemente ocultos e despercebidos. Como sempre, meu interesse vai muito mais além e tem como ponto de confluência e principal objetivo apresentar certas verdades espirituais e estimular o ânimo para a realização prática dessas verdades na sociedade organizada em que vivemos.
O mais relevante da Lei Ordenadora dos Ciclos, sendo o Devachan uma de suas expressões, é a consideração da potencialidade do espírito humano vivificado e sustentado pelo próprio Alento de Deus ou Vontade Criadora. O desejo humano é um aspecto da Vontade Divina.

Enquanto vivemos no Plano Físico, não nos damos conta de todo seu poder nem de suas infinitas possibilidades devido à materialização do nosso desejo e do pouco preparo de nossas mentes. O único elemento em nossa vida que trabalha, por assim dizer, a pleno rendimento é o desejo, que constitui o nervo vital de toda nossa existência. O desejo é o ímã que cria todo aquele depósito de elementos superiores que queremos conquistar, mas para os quais ainda não estamos plenamente capacitados. A intensidade dos desejos cria um núcleo de poder vital na consciência, uma força reprimida em estado de tensão permanente, uma mola constantemente contraída que anseia por expandir-se, um sonho permanente da Alma em encarnação que só no Devachan pode encontrar a exteriorização ou cumprimento pleno e adequado.

A ciência psicológica já reconheceu em parte a potencialidade desses desejos não realizados ou consumados que, por não serem cumpridos ou exteriorizados, constituem todas as desordens nervosas, traumas patológicos e complexos psíquicos que atualmente estão em estudo e consideração atenta pela Medicina moderna. O processo, no entanto, vai muito mais além. Cada desejo ou cada sonho - pois, na realidade, são a mesma coisa e têm uma função consubstancial - tem, como ponto de partida, a percepção das coisas e a sensibilidade que elas determinam em nosso espírito e, um ponto de chegada, o aspecto da realização ou cumprimento dos mesmos. O ponto de partida e o de chegada vão constituindo uma esfera de poder radioativo regida pela Lei dos Ciclos que aprisiona a consciência e a impede de perceber estados superiores de paz e de harmonia. O processo sempre se realiza de forma circular ou esférica e a consciência encerrada dentro da área de seus desejos sofre e se desespera até a plena consumação de seus objetivos. Alguns desses desejos são consumados em vida, outros, pelo contrário, podem ser satisfeitos apenas no Devachan, finalizado o ciclo da existência física, quando a Alma ou consciência, liberada de seus veículos grosseiros que a aprisionam na vida mortal, "vive e goza o fruto daqueles desejos que nunca pôde cumprir nem exteriorizar". Lá a vida certamente é bela, naquele santuário de satisfações e delícias que cada um vai fabricando com o material sutil de seus desejos e imaginações mais puros.

Esse é, na realidade, o Céu dos cristãos, conceito com que estamos familiarizados desde pequenos, um lampejo do Nirvana dos budistas, uma leve insinuação, ainda que muito direta, daquele estado de liberação que o homem deverá alcançar como Meta infinita de todas as suas existências temporais e para refletir em sua vida a Glória de Deus manifestada.

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(1) N.T. Pedro Calderón de la Barca (Madri. 1600-1681). Grande poeta e dramaturgo do barroco espanhol e da contrarreforma, tendo como um dos pontos altos de sua arte o profundo drama filosófico "La vida es sueño" (A vida é sonho).

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