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MISTÉRIOS E MAGIAS DO TIBETE
Chiang Sing


Parte II - Resumo:
O Formoso Lago dos Lótus
Os Vampiros da Floresta de Nathu-Iha
O Mosteiro de Kargyompa
A Vida entre os Lamas
O Punham Mágico do Rei Langdharma

O Formoso Lago dos Lótus Brancos

Após três semanas em Gangtok, conseguimos a ambicionada autorização de trânsito do Governo tibetano. Deixamos então, o palácio do rajá Dorge e partimos em direção da floresta de Nathu-Lha. Esta primeira etapa, rumo ao Tibete desconhecido, foi a mais difícil de ser organizada. As cargas deviam ser cuidadosamente ajustadas às costas dos animais, e Tsarong - o secretário particular do rajá - insistiu para que levássemos bastante agasalhos, mantimentos e chá.

Afinal, tudo ficou pronto. O rajá e suas três esposas, sempre amáveis e hospitaleiros, acenaram-nos um adeus desejando boa viagem. Generosamente, nosso anfitrião enviou-nos duas pessoas para acompanhar-nos na longa viagem. Tsering Khan, uma jovem cozinheira tibetana que ansiava rever sua terra e o Lama Dawa Kazi, que ficaria em Lhassa, terminando sua peregrinação mística. Kazi ficou sendo então o guia da nossa pequena caravana. Quando o último animal cruzou a divisa de Gangtok, e voltamos a cabeça para olhar o majestoso monte Kichijunga, sentimos grande alegria. Finalmente estávamos a caminho do mais desconhecido e misterioso país do mundo!

Cavalgamos por um caminho forrado de pedras grandes e lisas.

Algum tempo depois entramos na floresta, onde tivemos que conduzir nossos cavalos cuidadosamente, pelo caminho estreito e lamacento, ladeado por gigantescos bambus e figueiras selvagens.

Nada pode dar ideia da luxuriante mata do Himalaia. À medida Que íamos contornando o vale do rio Tista, os últimos murmúrios da civilização gradualmente desapareciam. Tivemos a impressão de que subíamos em direção às nuvens, deixando para trás este mundo científico e técnico, que tanto tem afastado o homem da Natureza...

A abundância de água nos vales do Himalaia é qualquer coisa que faz medo. Por todas as partes vimos cascatas, rios, lagos e fontes. De quando em quando lianas e cipós abriam-se timidamente, deixando ver lindas flores desconhecidas. Aos poucos pude compreender como aquela serena atmosfera pôde inspirar Sidarta Gautama, o Buda, a procurar um caminho mais rápido que levasse o ser humano à eternidade.

A voz de Mahima interrompeu meus pensamentos: - Veja! Ali está Karponang!

Vimos um aglomerado de casas brancas. Mais adiante um oceano de brumas, no qual íamos mergulhando pouco a pouco. Estávamos numa altitude de dois mil setecentos e cinquenta metros. Quando deixamos para trás a névoa avistamos o formoso lago Changu. Continuamos cavalgando durante várias horas até chegarmos à floresta de Nathu-Lha.

O caminho estava marcado por várias bandeiras de preces, como é comum no Tibete. São feitas de pele de carneiro bem curtidas, e nelas os Lamas gravam a fórmula sagrada: Om Mani Padme Hum!, que entre outras coisas significa Ó meu Deus que estás em mim. Estas bandeiras de preces são suspensas por cordões de crina de iaque: - espécie de boi peludo tibetano - e atadas a uma árvore por uma corda grossa. Oscilam nos galhos e é crença geral de que o vento leva as preces ao Criador. E o que passar por elas e agitá-las com fé, obterá o mérito da bênção de Buda, o Sublime. E quantas vezes o fizer, tantas serão as bênçãos recebidas.

Quando a caravana passou por um monte de pedras encimada por outras bandeiras de preces coloridas, com várias inscrições budistas, os tibetanos que estavam conosco desmontaram e colocaram mais uma pedra no monte, murmurando a tradicional ladainha "So Ya Lo Se." Soube depois que esta frase significa "Salve a joia do lótus!" sendo Buda a joia. Estas palavras também estão gravadas nos moinhos de orações encontrados em todos os templos e casas tibetanas.

Entardecia quando chegamos ao umbral da floresta. Resolvemos acampar numa clareira. Os animais foram aliviados de suas cargas, as tendas de couro armadas e logo acenderam uma boa fogueira. Sentamo-nos em volta da fogueira, enquanto a cozinheira Tsering Khan preparava uma frugal refeição. Quando terminamos de comer já era noite cerrada. Fazia bastante frio, pois estávamos numa grande altitude. Embora vestindo pesadas roupas de lã forradas de pele de castor, ainda assim sentíamos muito frio. Ao longe, os montes Himalaia cobertos de neve, brilhavam à luz da lua. Cansada pela longa jornada fechei as cortinas da minha tenda e fui repousar.


Os Vampiros da Floresta de Nathu Lha

Todos se recolheram e logo tudo era silêncio. Ouvia-se, apenas, o crepitar da fogueira. Eu estava quase dormindo quando ouvi um estranho vozerio do lado de fora. Levantei-me, abri a tenda e olhei. Vi somente dois criados sentados calmamente junto ao fogo, fumando seus longos cachimbos de barro. Pareciam alheios ao ruído. Senti um calafrio. Olhei para a mata e vi por entre as árvores, cobertas de musgo, as ruínas de um maravilhoso palácio. Iluminadas pela luz da lua eram de uma beleza singular. Uma força sobrenatural parecia empurrar-me naquela direção. Cheguei a dar alguns passos fora da tenda, mas algo dentro de mim fez-me parar. Após uma certa relutância, fiquei parada, olhando as maravilhosas ruínas que os dois criados pareciam não ver. Que palácio era aquele? - perguntava a mim mesma. De quem teria sido? Que tesouros arqueológicos encerrariam? Senti contato com um passado longínquo e acudiram à minha mente evocações de tempos fabulosos. Diante de mim, entre montanhas numerosas aquelas ruínas fascinavam-me num apelo mudo. Pensei ver diáfanas sombras que pareciam acenar-me. Mas... sem saber como, uma força poderosa obrigou-me a desviar os olhos. Fechei apressadamente as cortinas da tenda e fiquei deitada sobre o colchão de borracha, pensando no mistério de tudo aquilo. Pouco a pouco fui adormecendo e o sono acalmou a minha agitação.

Na manhã seguinte, bem cedo ainda, procurei o Lama Kazi. Ele conhecia toda aquela região e poderia acompanhar-me numa visita às ruínas ali próximas. O Lama olhou-me surpreso.

- Que ruínas, minha jovem senhora? - indagou. Contei-lhe então o que ocorrera durante a noite.

Kazi ficou pensativo por um instante. Depois falou convicto:

- Esta visão não passou de uma grande Maya (ilusão).

- Como assim? - perguntei perplexa.

E ele prosseguiu falando:

- Nesta região, muita gente costuma ver ruínas fantásticas durante a noite. Mas elas não são reais. São criadas pela vibração do pensamento dos lendários vampiros "Tísas" que há séculos vivem nesta floresta... Com os fios dos seus pensamentos, tecem uma teia mágica com a qual atraem os incautos, para sugar-lhes o sangue. Depois, abandonam o corpo em algum lugar da floresta e os corvos se encarregam dele.

E Kazi contou que o Tibete é cheio de esqueletos mal-assombrados por demônios, dos quais conhecia muitos exemplos macabros. De um extremo a outro o país está cheio de feiticeiros, magos, místicos, filósofos, ermitões e santos homens. É geral a crença num mundo espiritual, povoado de seres invisíveis uns bons outros maus, que em certas ocasiões aparecem aos mortais que têm o dom da mediunidade.

Certamente a negação rotunda destes fatos é o único recurso dos críticos, o mais seguro abrigo em que se refugiará algum dia, o último dos céticos. Inútil é conversar ou tentar convencer com quem nega, sistematicamente os fatos do adversário, evitando assim ter que conceder algo. Creuzer - o mais erudito dos mitólogos alemães - talvez tenha invejado a plácida confiança em si dos céticos, ao ver-se forçado a admitir num momento de desesperada perplexidade que:

"Somos obrigados a retroceder às teorias dos gnomos, e dos gigantes, tal como os compreenderam os antigos; pois sem elas, é absolutamente impossível explicar algo referente aos mistérios mitológicos". (1)

_____
Nota:

(1) - Creuzer. Introdução aos Mistérios, vol. III, pág 456


O Mosteiro de Kargyompa

Ao sairmos da floresta de Nathu-Lha, alcançamos um caminho sinuoso, que parecia conduzir-nos aos píncaros do céu. Fomos subindo e, a cerca de uma altitude de 3.600m, todos os traços da vegetação da mata foram desaparecendo. Aqui e ali víamos apenas gigantescos carvalhos e rododentros, que também foram rareando para dar lugar a velhos pinheiros.

Fomos andando e ao alcançarmos as margens de um rio, vimos um enorme boi peludo, que os tibetanos chamam de iaque. Ele bebia água tranquilamente e pareceu ignorar nossa presença. Continuamos a andar, a 3.900m desapareceram todos os traços de vegetação. Abismos e precipícios, rochas e cavernas de pedra semeavam o caminho. O frio era intenso à medida que continuávamos subindo. Quando atingimos 4.300m, começou a nevar. Lagos e rios, rochas e montanhas pareciam blocos de gelo, tive à impressão que ia morrer de tanto frio!

- Faça a respiração yogue para esquentar o corpo! - aconselhou o Dr. Vessantára.

Obedeci. Pouco depois consegui equilibrar a minha circulação.

Fiquei mais calma e animada a prosseguir. A região era gelada, mas belíssima. Afinal, chegamos à fronteira entre Sikkim e o Tibete. Paramos um pouco no alto da montanha e pela primeira vez, profundamente emocionada, olhei a terra tibetana.

Pareceu-me uma imensa massa de montanhas nevadas e vales profundos, cheios de nuvens. Cautelosamente, prosseguimos viagem pelos caminhos nevados. A descida era tão íngreme que tivemos que desmontar. Mas de repente a neve parou de cair. Os primeiros raios do sol começaram a brilhar timidamente. Até que o sol foi esquentando e tanto a neve como o gelo foram desaparecendo e vimos novamente a terra. Para nós isto foi um espetáculo estranho e maravilhoso! Era quase inacreditável observar esta transformação dentro de poucas horas.

- São milagres do vale de Chumbi... - explicou o Lama Kazi. Apareceram os pinheiros e logo algumas florinhas silvestres vermelhas e azuis, cada vez mais numerosas, à medida que descíamos rumo ao vale. Entardecia quando acampamos no formoso vale de Chumbi. Após uma noite serena e repousante, prosseguimos viagem. Eram cerca de duas horas da tarde, quando vimos o mosteiro de Kargyompa. Era uma singela construção de pedra no alto da montanha, mas de uma grande beleza.

- Neste mosteiro vivem uns 60 Lamas e 30 noviços ou "trapas" - falou Kazi. Seria bom irmos até lá!

À medida que nos aproximávamos, fomos vendo gravados nos altos muros de pedra, pinturas representando deuses lamaístas. Na entrada do mosteiro havia uma fonte cristalina, onde os animais pararam para beber. A força hidráulica fazia girar um grande moinho de preces, fixado dentro da fonte.

Assim que passamos os grandes portões abertos de par em par, veio ao nosso encontro um monge baixinho, gorducho e sorridente. Sorriu ainda mais quando Vessantára entregou-lhe uma bolsa cheia de dinheiro e pediu-lhe pousada para nós. Explicou que vínhamos da Índia e íamos visitar os lugares santos do Tibete.

- Meu nome é Om Tsé - falou - Entrem e sejam bem-vindos! Fomos andando em direção a um pátio sombreado por árvores centenárias. Grupos de "trapas" ou noviços, usando longo hábito de lã cinza clara, colhiam amoras na ala oeste. Observamos que todos tinham cabelos compridos e lisos caindo-lhes pelos ombros e usavam um barrete pontudo de pele de iaque. Mais tarde soubemos que este chapéu é uma das características dos noviços de Kargyompa. Conduzidos por Om Tsé, entramos numa grande sala forrada com uma espécie de tatamis ou esteiras de palha de arroz. No fundo, vimos um altar de mármore branco com um grande Buda sentado sobre uma flor de lótus. A estátua era de bronze polido e numa doce atitude meditativa Sidarta Gautama, o Buda, nos olhava.

- Esperem um momento - disse Om Tsé - vou avisar vossa chegada ao Grande e Precioso Lama Rimpoche.

No Tibete é costume quando visitamos alguém, levarmos uma echarpe de seda branca chamada "ka-ta". E em troca, recebemos outra semelhante.

Alguns momentos depois apareceu o Lama Rimpotche seguido por Om Tsé. Desta vez tive uma surpresa agradável, pois o Lama Rimpotche parecia ser sábio e inteligente, ao contrário de Om Tsé que parecia simplório.

O Grande e Precioso Lama era um homem alto, magro de uns setenta anos presumíveis, Brilhava em seus olhos amendoados uma luz tranquila e radiosa, Ele vestia uma túnica amarelo-açafrão, de uma elegância nobre e remota; na cabeça usava o mesmo barrete pontudo de pele de iaque, sobre os cabelos brancos e lisos. Por entre as pregas de sua túnica vimos um grande punhal cujo cabo incrustado de turquesas - a pedra sagrada do Tibete - era uma obra de arte preciosa. Estranhei. Afinal, por que motivos um Lama andava armado? Não havia explicação lógica no momento. Mais tarde soube a estranha e maravilhosa história daquele punhal.

Após a troca das echarpes de seda, o Lama Rimpoche conversou longamente com Kazi em tibetano. Embora nada compreendesse, senti certa emoção ao ouvir sua voz grave e macia. Após um breve diálogo, o Grande e Precioso Lama saudou-nos com um leve sorriso e retirou-se.

- O abade concordou em que ficássemos aqui, até passarem as grandes chuvas - disse Kazi, enquanto Om Tsé nos conduzia aos aposentos dos hóspedes, situados na ala norte do mosteiro.


A Vida Entre Os Lamas

Estava ocupada em arrumar meus pertences num grande alforje, como é costume no Tibete e a dobrar o meu colchão de borracha forrado de lã, pois no mosteiro não há camas nem cadeiras (os lamas sentam-se sobre almofadas e dormem no chão sobre o próprio hábito), quando ouvi soar um gongo.

Olhei através da grande janela e vi os lamas reunidos no pátio. Uma música estranha chegou aos meus ouvidos. A orquestra era reduzida, Era formada de 2 "gyalings" (espécie de oboés), duas "ragdongs" (enormes trombetas de metal típicas do Tibete, de três ou quatro metros de comprimento) e dois tambores.

- Que reunião será esta? - indaguei a mim mesma.

Um instante depois bateram na porta da cela onde eu estava hospedada. Era a esposa de Vessantára. Com o rosto moreno afogueado e os grandes olhos escuros muito brilhantes, ela falou:

- Venha! Vamos assistir à cerimônia da saudação ao Sol poente. Descemos uma tosca escada de pedras e logo nos encontramos no pátio, diante dos lamas. Vi um altar primitivo feito de pedras rosadas. Nele brilhavam as chamas de uma tocha, que soubemos depois simbolizar os quatro princípios da Natureza. Além, no horizonte azul, picos abruptos surgiam entre as nuvens e o Sol poente derramava um cálido brilho em toda a paisagem. Aproveitamos a claridade para tirar uma foto dos lamas tocando as longas trombetas. Mas a um sinal de Kazi, tivemos que guardar a máquina, pois as fotos são proibidas.

O abade Rimpoche estava de pé, olhando para o Oeste, com os braços estendidos para o alto e as palmas das mãos para cima. Pareciam indicar que ele recebia, agradecido, a luz divina.

Enquanto isto a orquestra dos lamas continuava a tocar em surdina. A música fluía pura, límpida e serena; baixinho os lamas murmuravam estranhas orações. Quando a cerimônia terminou já era noite. Foram acesos diversos lampiões de óleo de iaque, muito usados no Tibete.

Fomos conduzidos ao refeitório. Uma sala ampla, forrada de "tatamis" ou esteiras de palha de arroz, onde uma fileira de mesinhas baixas estavam cobertas com alvas toalhas de algodão, tecidas no próprio mosteiro. Sentamo-nos no chão, sobre almofadas, com as pernas cruzadas. A refeição constava de arroz integral cozido com ervas aromáticas, frutas, coalhada e mel silvestre. Após a refeição, todos nos recolhemos a nossos aposentos.

De madrugada, começaram as fortes chuvas, o que é muito raro no Tibete, país seco e árido.

Com o correr do tempo fomos aprendendo alguns costumes dos lamas, colhendo lendas e tradições, gravando suas estranhas músicas e procurando sempre conhecer algo mais sobre a vida dos lamas, naquele longínquo mosteiro.

A disciplina religiosa parecia ser bastante severa O dia começava às quatro horas da manhã, tal como na Índia, que dizem ser a hora santa de Brahma o Criador. Apos as orações matinais, faziam uma refeição frugal à base de chá com bastante manteiga de iaque e broas de cevada. Em seguida iam trabalhar em diversos setores. O serviço doméstico era feito alegremente, pois todos acreditam na santidade do trabalho manual, não evitando nenhum serviço, por mais humilde e desprezível que seja. Diversas vezes vimos, com espanto, o abade Rimpoche na cozinha preparando o "tsampa" cevada torrada cozida com manteiga e água, que é o alimento principal dos tibetanos. Também costumam misturar cevada com chá quente. A mistura era mexida vigorosamente sobre o fogo brando, até ficar bem cremosa. Juntavam depois sal e manteiga de iaque. O resultado é uma massa elástica que pode ser enrolada em bolos de várias formas decorativas. Soubemos que alguns feiticeiros costumam fazer com esta massa as famosas "tormas" bolos ou tortas voadoras, que amedrontam e assombram os tibetanos.

A história destas "tormas" está ligada à magia negra e é das mais curiosas. Têm uma forma cônica piramidal. Consta que primeiro os feiticeiros fazem um rito especial, chamando os deuses protetores. Dizem que mal eles terminam a invocação, as "tormas" se animam como se tivessem um demônio dentro, começam a voar e, viajando pelo ar como pássaros maléficos, entram nas casas das pessoas que os magos negros querem enfeitiçar, causando grandes estragos. Quando alguém tenta segurar uma destas "tormas", cai logo morto vítima de um estranho poder infernal.

Soubemos que no mosteiro de Kargyompa o ensino monástico consiste nos seguintes estudos:

Filosofia oriental e metafísica.
Ritual, magia e astrologia.
Medicina natural e o poder das ervas.
Regras monásticas do lamaísmo.
Traçado dos círculos mágicos Kyilkhos ou Kiikors.

O traçado destes círculos mágicos é curioso e lembra muito os traçados dos pontos umbandistas do Brasil. Tivemos a oportunidade de ver alguns, durante nossa estadia em Kargyompa. São uma espécie de diagrama desenhados no chão ou no papel, bem como sobre metal, pedra ou madeira. Há uma grande variedade deles. São desenhados com pós coloridos, lembrando a pemba africana, em diversas camadas; que permitem assim um desenho em relevo. Alguns têm cerca de três metros de diâmetro. No centro, são colocadas lamparinas de azeite, velas e bandeirolas de papel colorido com inscrições mágicas. Os lamas levam anos estudando as regras do Kyilkhos ou Kiikors. O menor erro no desenho, nas cores ou na disposição do acessório pode acarretar maus resultados. Dizem os lamas que estes círculos ou "pontos" mágicos são como facas de dois gumes; ferem e matam aqueles que não sabem desenhá-los. Cada variedade de círculo exige uma iniciação diferente. Se for traçado por uma pessoa não iniciada, não tem nenhum poder.

Os lamas animam magicamente estes círculos e também as imagens dos santos ou demônios, antes de render-lhes culto. Este rito chama-se "prana pratisha" e tem por objetivo transmitir fluídos psíquicos que são absorvidos pela imagem. Estes fluídos parecem que dão vida às imagens. Esta vida se conserva enquanto houver um culto diário, tanto ao círculo mágico como à estátua. Ela se alimenta da concentração mental daquele que praticou o rito. Se faltar este alimento sutil, os fluídos morrem e o objeto volta a ser matéria inerte.

Consta que estes ritos são praticados tanto pelos Lamas do Chapéu Vermelho como pelos Lamas do Chapéu Amarelo. A história destas duas congregações que formam o clero tibetano é muito curiosa e merece ser transcrita:

Em épocas bem remotas, o Tibete foi governado pelos "Bon", ou feiticeiros. Mas, em 1368, um santo Lama, chamado Tsong Kapa, discordou das normas nigromates dos feiticeiros e empreendeu uma reforma religiosa, proibindo a magia negra e o casamento dos monges. Formaram-se então dois grupos antagônicos: os Lamas do Chapéu Amarelo, seguidores de Tsong Kapa, e os Lamas do Chapéu Vermelho, adeptos dos feiticeiros. Durante muitos anos houve uma grande luta, mas por fim venceram os Lamas do Chapéu Amarelo, chefiados por Padma Sambhava, um dos maiores heróis do Tibete. Mas, ainda hoje são muitos os mosteiros da seita vermelha espalhados por todo o País das Neves. Consta que no mosteiro de Emche há um lama do Chapéu Amarelo que é abade de monges da seita vermelha, num maravilhoso sincretismo. Este fato não é raro no Tibete, talvez porque os magos brancos desejem dar uma chance de maior sabedoria aos magos negros.

Na véspera de nossa partida rumo ao coração do Tibete tivemos uma conversa muito interessante com o abade Rimpoche do mosteiro de Kargyompa onde estávamos hospedados. Tendo Kazi como intérprete, traduzindo as palavras do abade para o inglês, indaguei:

- Por que os grandes iniciados são sempre do sexo masculino?

- Não é comum encontrarmos uma criatura que alcança a grande iniciação, enquanto habita um corpo feminino, embora haja exceções. A mulher representa a força lunar negativa "Yin" da Natureza. Ela tem dez "chakcras" ou centros de força energética sutis e não tem o dom da criação que está no sêmen masculino. Em tibetano chamamos estes centros de "khorlos", rodas ou centros de força energética sutil.

- Como são estes centros de força? - indaguei muito interessada.

- Dizem nossos velhos sábios que o corpo humano tem sete centros psíquicos ou sutis de grande importância. São vórtices, ou rodas vibratórias semelhantes a um lótus - a flor sagrada de toda a Ásia. Correspondem ao Corpo Espiritual dos plexos nervosos que há em todo ser humano. Os mais conhecidos são sete. Mas existem outros centros de força sutil magnética, só conhecidos nas altas etapas da iniciação. No homem são 9 - o número perfeito. Na mulher são 10. Sete conhecidos e três ocultos.

- Onde estão situados estes centros de força magnética sutil?

- Começando de baixo para cima temos:

7 - Muladara - está ligado ao elemento terra. É a sede do desejo. Está localizado no plexo pélvico sobre o sexo. Tem a forma de um lótus de quatro pétalas.

6 - Svadistana - está ligado ao elemento água. Localiza-se na região do umbigo no plexo hipogástrico. Sua forma é a de um lótus de seis pétalas.

5 - Manipura - está ligado ao elemento fogo. Situa-se no plexo solar. Parece um lótus de dez pétalas.

4 - Anahata - está ligado ao elemento ar. Corresponde ao plexo cardíaco. Parece um lótus de doze pétalas.

3 - Vishuda - está ligado ao éter imponderável. Situa-se no plexo faríngeo. Parece um lótus de dezesseis pétalas.

2 - Ajna - situado no entre cenho. Dá aos homens o dom da 3ª. visão e da clarividência. Parece um lótus de duas pétalas.

1 - Sahasrara - é o coronário, situado no alto da cabeça. Corresponde ao revestimento cortical do cérebro. É representado simbolicamente por uma proeminência que vemos no alto da cabeça das estátuas dos Budas, os Sublimes Iluminados. Parece um lótus de mil pétalas.

Quanto aos outros centros ocultos, nada mais pode ser dito... Por um momento o abade ficou em silêncio. Depois falou:

- Na futura raça dourada que um dia nascerá no Ocidente os centros de força magnética sutil que estão ocultos, aparecerão.

- Por favor, Venerável Rimpoche, fale sobre esta raça dourada! - pedi sumamente interessada.

- A raça dourada formará a sétima raça do Terceiro Milênio.

Haverá então em todos os países ocidentais, um aumento assombroso de inversões sexuais. Será o início de uma violenta fase de transição e preparação, para uma forma de evolução biológica espiritual e moral, mais elevada. Devemos, pois, ser tolerantes com estes seres em estado de transição evolutiva, cujo número aumenta cada vez mais no mundo.

- É verdade! - concordei pensativamente.


O Punhal Mágico do Rei Langdharma

As mãos magras e bonitas do abade acariciavam levemente seu lindo punhal tibetano.

- Que significa para o senhor, este lindo punhal? - indaguei curiosa.

E na sua voz grave e mansa o abade respondeu:

- Este "purbha" - punhal mágico - foi retirado por meu Guru, o venerável Lama de Latchen, das mãos de um feiticeiro, cujos antepassados roubaram-no do nosso antigo rei Langdharma. Os magos negros há muitos séculos, enfeitiçaram este punhal e, então, ele passou a ser manipulado mentalmente à distância. Um dia... voou pelos ares e cortou o pescoço do rei Langdharma, que odiava os feiticeiros. (1) Desde então, todos que o tocavam, morriam, exceto os feiticeiros. Até que um dia o Lama de Latchen, com sua grande sabedoria, venceu os feiticeiros. Apoderou-se do punhal e retirou-lhe a força maléfica. Quando completei minha iniciação, o mestre fez-me

presente deste punhal encantado. Guardo-o como um talismã contra o mal.

- E o Lama de Latchen, vive ainda? - perguntei.

- Sim... ainda está vivo, apesar de ter mais de quatrocentos anos ...

- Como?

Essa assombrosa lenda de longevidade é demasiadamente fantástica para ser aceita por um raciocínio lógico.

O abade sorriu da minha incredulidade e prosseguiu:

- Através de certos ritos secretos, os Gurus ou Mestres podem conservar o corpo físico por tempo indefinido, até completarem a sua missão da terra.

Naquela época fiquei completamente incrédula, mas hoje, passados tantos anos e tantas experiências no campo espiritual, aceito as palavras do abade como verdades irrefutáveis.

- Como eu gostaria de conhecer o Lama de Latchen! - exclamei curiosa.

- Mais cedo do que espera, este encontro se dará - respondeu o abade.

- Mas, onde poderei encontrá-lo?

- Espere e verá - foi a enigmática resposta.

E assim dizendo, o abade levantou-se, fez uma leve reverência e desapareceu atrás dos pesados reposteiros cor de açafrão.

Na manhã seguinte deixamos o mosteiro de Kargyompa e partimos rumo à cidade de Yatung. Cavalgamos durante horas pelo vale lamacento, bordado de pinheiros e rododentros. Vimos um bando de gazelas e logo depois deparamos com o maravilhoso iago "Padama-Pulgo-Cho" - ou lago dos lótus. As grandes folhas verdes, de caules longos e esguios pairavam acima da superfície, realçando o colorido suave das flores. Vimos diversas variedades de lótus brancos, azul-claro, rosa e carmesim.

- Esta é a flor sagrada de toda a Ásia! - murmurou Mahima, com um brilho novo nos grandes olhos negros.

Era a primeira vez que víamos lótus coloridos, pois só conhecíamos o lótus branco da Índia e ficamos verdadeiramente encantados. Os lótus tibetanos parecem maiores e de um colorido mais intenso.

Assim que chegamos às margens do lago, o Lama Kazi desmontou e ajoelhou-se diante das flores. Paramos também e ficamos esperando. Ouvimos o cântico dos pássaros na margem oposta do lago. Logo, ouvimos também os roucos grasnidos de um corvo. Finalmente o Lama Kazi ergueu-se e veio para junto de nós.

- Perdoem-me - disse ele - nós, os tibetanos, vemos nas flores de lótus a representação simbólica da Suprema Divindade. Julguei meu dever saudá-la, tal como mandam nossos antigos ritos.

- Foi bom pararmos aqui - retrucou o Dr. Vessantára - assim pudemos admirar calmamente, esta bela paisagem. Na minha pátria, a Índia, o lótus é também considerado como emblema do Criador.

E virando-se para a esposa, Vessantára falou: - Lembras, Mahima, daquela lenda dos lótus descrita no livro "Xiva Purana"?

- Sim, lembro-me.

- Como é esta lenda? - indaguei curiosa.

E Mahima falou:

- Conta-se que certa vez a deusa Dolma do Tibete, pediu ao deus Brahma, que lhe contasse a origem da flor de lótus. Quando o deus Vixnú, ia criar o mundo - disse Brahma - fez surgir nas águas do Rio de Prata da Via Láctea, um formoso lótus branco de cujas pétalas eu nasci. Quem sou eu? De onde vim? - perguntei atônico. Depois de pensar muito cheguei à conclusão de que o lótus era meu pai e minha mãe. Então, resolvi descer por um dos caules até alcançar a raiz da flor. Levei cem anos descendo. Afinal, encontrei o deus Vixnú que me repreendeu por ter feito aquilo. Discutimos até que apareceu o deus Xiva, que evitou nossa briga. Então, Vixnú desceu pela raiz da flor até chegar à misteriosa cidade encantada de Patala, onde vivem os puros de espírito. E tomando a forma de um cisne eu voei para o infinito...

- Nas minhas andanças pelo Egito - falou Pierre Julien - encontrei também o culto do lótus. Os antigos sacerdotes de Tebas diziam que o lótus é o símbolo de "Viraj-Horus" - o deus andrógino filho de Ísis e Osíris. Para eles as pétalas do lótus simbolizam os sete espíritos guardiães que regem os astros. Com as sementes torradas os sacerdotes preparavam a comida dos deuses. Com a raiz que é redonda e do tamanho de uma maçã, fabricavam um bálsamo perfumado com o qual se ungiam.

- Que interessante! - exclamei.

- Qual é o simbolismo do lótus aqui no Tibete, além daquele que já nos disse? - perguntei a Kazi.

Kazi ficou em silêncio por um momento. Esperamos pacientemente suas palavras:

- Para os tibetanos a flor de lótus é o emblema da difusão da vida e da fertilidade da terra. Está relacionado com as vibrações do Sol nascente. Quando o astro rei surge no horizonte, o lótus se abre por sobre as águas. Quando o Sol desaparece, a flor se fecha. Dizem que a raiz do lótus fundida na lama representa a vida material, o ser humano que, com os pés presos na terra, eleva seu pensamento ao infinito.

- Tudo isto é fascinante! - exclamou o velho Pierre Julien. Creio que quando voltar à França, escreverei um livro sobre o lótus!

Seus olhos azuis brilhavam e seu rosto enrugado parecia ter uma nova vida. Apesar dos seus sessenta anos, Pierre era um velho robusto e forte.

- Então, comece logo a escrevê-lo - disse Vessantára - antes que Chiang Sing o faça...

Todos nós rimos e voltando a montar, prosseguimos viagem.

O caminho estava marcado com bandeiras de preces. Vimos também muitos moinhos de orações pendurados nas árvores. Estes moinhos são cilindros de metal que contém palavras sagradas escritas numa fita de papel. Cada giro da manivela multiplica o valor das preces.

À medida que nos aproximávamos, fomos observando que Yatung era uma bela aglomeração de casas de pedras brancas, que pareciam elevar-se em direção a um grande edifício retangular. Cada casa, algumas delas com três andares, tinha paredes um pouco inclinadas. Estas eram perfuradas por janelas esculpidas com figuras de deuses. Para entrar em Yatung, seguimos uma estrada pavimentada de lajotas, à moda dos antigos romanos. Passamos embaixo de um miniarco de triunfo, cuja fachada era enfeitada com desenhos coloridos. Desenhos geométricos representando "Yantras". Estes "Yantras" são usados para a prática da reintegração do homem consigo mesmo. Eram azuis, vermelhos e dourados.

Nossa primeira visita foi ao Prefeito da cidade. Subimos até sua bela residência, levando conosco as indispensáveis echarpes da felicidade. O Prefeito, cujo nome era Mingyur, nos recebeu num grande salão coberto por lindos tapetes chineses, e tendo vários almofadões de seda bordada, espalhados pelo chão. Fomos acolhidos cordialmente. Diante dos nossos passaportes e guias de trânsito livre, autenticados pelo Governo tibetano, Mingyur após fazer perguntas triviais, deixou-nos seguir.

E assim fomos para uma pequena hospedaria ao norte de Yaatung. Ainda não tínhamos desfeito a bagagem, quando Miahima Vesssantára veio chamar-me. Na sala, junto a Kazi, Vessantára e Pierre, estava um jovem Lama.

Usava uma ampla túnica de linho grosso amarelo e na cabeça o tradicional chapéu pontudo, forrado de peles. Mais tarde, soube que este chapéu simboliza o Cordão de Prata, cuja entrada no corpo é feita no alto da cabeça onde está situado o "Lótus de mil pétalas." - Ele veio dar-nos as boas vindas e trazer-nos presentes de parte de seu Mestre, o Venerável Lama de Latchen. - disse Kazi.

E apontou para uma bandeja de prata que o jovem oferecia, cheia de biscoitos, folhas de chá e manteiga de iaque, cuidadosamente embrulhada em papel de seda.

- O Lama de Latchen! - exclamei alegremente.

- Sim... ele nos convida para ficarmos hospedados no seu mosteiro, a alguns quilômetros distante d'aqui.

Quando voltei a mim da emoção, perguntei:

- E o que estamos esperando?

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Nota:

(1) - Soubemos depois que há uma outra versão sobre o rei Langdharma, que afirma justamente o contrário. Muitos acreditam que o rei Langdharma pretendia restabelecer no Tibete o Xamanismo - seita onde impera a feitiçaria - mas, devemos concluir que noventa por cento destas histórias, são puramente mitológicas. Que cada um escolha a sua própria versão. A verdadeira talvez nunca venha a ser conhecida.

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