O Caminho para o Reino de Deus

A história da Crucificação é tão bem conhecida e tão familiar que as palavras em que se apoia podem significar pouco. O relato da entrada triunfante do Cristo em Jerusalém, de sua reunião com os discípulos no andar superior, lá comungando com eles do pão e do vinho, e a deserção daqueles que supostamente o amavam, com Sua subsequente agonia no Jardim do Gethsemane, é tão familiar para nós como nossos próprios nomes, e muito menos atraente. Aquela é a tragédia do Cristo. Ele fez tanto e foi tão pouco reconhecido. Levou vinte séculos para começarmos a compreendê-Lo e à Sua missão e carreira. A própria Crucificação foi apenas uma consumação antecipada e aguardada daquela carreira. Não era possível qualquer outro final. Ele estava predeterminado desde o começo e realmente datava do tempo em que, após a iniciação do Batismo, Ele começou a servir à humanidade, a ensinar e pregar as boas novas do reino de Deus. Aquele era Seu tema, e nós nos esquecemos dele para pregar a Personalidade de Jesus Cristo, um tema que Ele Próprio ignorava e que Lhe parecia de pouca importância em face dos valores maiores envolvidos. Esta é, novamente, a tragédia do Cristo. Ele tem um conjunto de valores e o mundo tem outro.

Fizemos da Crucificação uma tragédia, enquanto que a verdadeira tragédia foi nosso fracasso em reconhecer seu significado real. A agonia no Jardim de Gethsemane foi baseada no fato de que Ele não fora compreendido. Muitos homens morreram de mortes violentas. Nisto, o Cristo não foi de modo algum diferente de milhares de outros homens de visão ampla e reformadores em todos os tempos. Muitas pessoas passaram pela experiência do Gethsemane e oraram com o mesmo fervor que o Cristo para que se cumprisse a vontade de Deus. Muitos homens foram abandonados por aqueles de quem se poderia esperar a compreensão e participação no trabalho e serviço considerados. Em nenhum desses aspectos o Cristo terá sido realmente exclusivo. Mas Seu sofrimento foi baseado em Sua visão ímpar. A falta de compreensão das pessoas e as interpretações distorcidas que os futuros teólogos dariam à Sua mensagem, devem certamente ter sido uma parte de pré-visão, como igualmente o conhecimento de que a ênfase conferida a Ele como o Salvador do mundo retardaria em séculos a materialização do reino de Deus na terra, que era Sua missão fundar. Cristo veio para que toda a humanidade pudesse ter "vida... mais abundantemente." (1) De tal maneira interpretamos Suas palavras que somente os "salvos" são creditados por terem dado os passos necessários em direção àquela vida. Mas a vida abundante certamente não é uma vida para ser vivida futuramente, em algum distante paraíso onde os que são crentes gozarão uma vida exclusiva de felicidade, ao passo que o resto dos filhos de Deus será deixado de fora. A Cruz teve a finalidade de indicar a linha de demarcação entre o reino dos homens e o reino de Deus, entre um grande reino da natureza que já havia alcançado a maturidade e um outro reino da natureza que podia agora entrar em seu ciclo de atividade. O reino humano tinha evoluído até o ponto de ter produzido o Cristo e aqueles outros filhos de Deus cujas vidas deram constante testemunho da natureza divina.

Cristo assumiu o antigo símbolo e carga da cruz, e, tomando Seu lugar ao lado de todos os anteriores Salvadores crucificados, encarnou em Si Próprio o imediato e o cósmico, o passado e o futuro, cobrindo a Cruz no monte fora de Jerusalém (cujo nome significa "visão da paz"), assim chamando a atenção para a fundação do reino para o qual morreu. A obra tinha sido completada e naquele estranho pequeno país chamado Terra Santa, uma estreita faixa de território entre os dois hemisférios, o Oriente e o Ocidente, Leste e Oeste, Cristo subiu à Cruz e fixou os limites entre o reino de Deus e os reinos do mundo, entre o mundo dos homens e o mundo do Espírito. Assim ele levou a um clímax os antigos Mistérios, que haviam profetizado a vinda daquele reino e instituiu os Mistérios do reino de Deus.

O esforço para fazer chegar à perfeição a vontade de Deus acabou com a mais completa vida que tinha sido vivida na terra. A tentativa para fundar o reino, predestinado desde todos os tempos, e o antagonismo que isto evocou, levou Cristo ao lugar da crucificação. A dureza dos corações humanos, a fraqueza de seu amor e o fracasso deles em perceber a visão, quebrou o coração do Salvador do mundo - um Salvador porque Ele abriu a porta para o reino.

É tempo de despertarmos para sua verdadeira missão, que é materializar o reino de Deus na terra, hoje, aqui e agora. Já passou o tempo em que podíamos pôr ênfase num futuro e vindouro reino. As pessoas não estão mais interessadas num possível estado celestial ou num provável inferno. Elas necessitam aprender que o reino está aqui e precisa expressar-se na terra; ele consiste daqueles que cumprem a vontade de Deus a qualquer custo, como fez Cristo, e que podem amar-se uns aos outros como Cristo nos amou. O caminho para aquele reino é o caminho que Cristo trilhou. Ele envolve o sacrifício do eu pessoal pelo bem do mundo, e o serviço à humanidade em lugar do serviço aos próprios desejos. No curso da enunciação dessas novas verdades concernentes ao amor e ao serviço Cristo perdeu sua vida. Canon Streeter nos conta que "o significado e o valor da morte do Cristo ressaltam de sua qualidade interior. É a expressão no ato externo de uma autodedicação livremente escolhida, sem reclamação e sem reserva, ao mais alto serviço a Deus e ao homem. O sofrimento incidental a este auto-oferecimento é moralmente criativo." (2)

Não será, quem sabe, a Crucificação de Cristo, com seus grandes eventos precedentes - a comunhão e a experiência do Gethsemane - uma tragédia baseada no conflito entre o amor e o ódio? Não é nossa intenção diminuir o acontecimento mundial que teve lugar no Calvário. Mas hoje, ao se olhar para trás para aquele acontecimento, uma certa verdade começa a emergir, e esta é que nós temos interpretado aquele sacrifício e aquela morte em termos puramente egoístas. Nós nos ocupamos com nosso interesse individual no assunto. Demos ênfase à importância de nossa salvação individual e sentimos ser ela de tremenda importância. Mas a visão mundial e o que Cristo estava destinado a fazer pela humanidade através dos tempos, e a atitude de Deus para com os seres humanos desde os tempos mais remotos, durante a vida do Cristo na Palestina e daí até o tempo atual, estão subordinados ao fator de nossa crença ou não crença na eficácia da Crucificação no Calvário para salvar nossas almas individuais. Entretanto, em Sua conversa com o ladrão arrependido Cristo admitiu-o no reino de Deus com base no seu reconhecimento do divino. Cristo ainda não havia morrido e o sacrifício de sangue do Cristo ainda não ocorrera. Foi quase como se Cristo tivesse previsto a volta que a teologia iria fazer com relação à Sua morte e tivesse tentado contrabalançá-la, fazendo do reconhecimento do ladrão agonizante um dos acontecimentos marcantes em Sua morte. Ele não fez qualquer referência à remissão dos pecados através de Seu sangue, como condição para aquela admissão.

A questão principal foi a questão entre o amor e o ódio. Somente S. João, o Apóstolo amado, o mais próximo a Jesus, a compreendeu realmente; e em suas Epístolas a ênfase é inteiramente sobre o amor, não se encontrando, ali, em parte alguma, a usual interpretação ortodoxa. Somente amor e ódio; o desejo de viver como filhos de Deus e a inclinação para viver como seres humanos comuns: nisso repousa a distinção entre o cidadão do reino de Deus e um membro da família humana. Foi amor que Cristo procurou expressar, mas o que tem caracterizado a aplicação oficial de Seu ensinamento, em todos os tempos, é ódio, separatividade e guerra, culminando na Guerra Mundial. Cristo morreu para trazer ao nosso conhecimento que o caminho para se entrar no reino de Deus era o do amor e do serviço. Ele serviu e amou, produziu milagres e reuniu os pobres e famintos. Ele os alimentou e procurou por todos os meios possíveis chamar a atenção para o princípio do amor como a principal característica da divindade, somente para verificar que esta vida de serviço amoroso Lhe trouxe problemas e finalmente a morte na Cruz.

Temos lutado pela doutrina teológica da Imaculada Concepção. Temos lutado pelas doutrinas pelas quais os homens serão salvos. Temos lutado pela questão do batismo, e pela expiação. Temos lutado pelo fato e pela negação da imortalidade, e pelo que o homem precisa fazer para a ressurreição dos mortos. Temos considerado metade do mundo como perdida e somente o crente cristão como salvo; no entanto, o tempo todo Cristo nos disse que é o amor, o caminho que leva ao reino e que o fato da presença da divindade em cada um de nós nos torna elegíveis para aquele reino. Temos omitido a compreensão de que "O sacrifício expiatório é a harmonizadora desarmonia alheia pelo poder de uma presença espiritual, a qual produz a grande transmutação; o mal é absorvido e transmutado no bem, ou equilibrado." (3) Isto constitui a tentativa do Cristo, e o fato de Sua Presença é o meio harmonizador da vida. Os homens não são salvos pela crença na formulação de um dogma teológico, mas pelo fato de Sua Presença viva, do Cristo vivo imediato. A compreensão do fato da presença de Deus no coração humano é a base da visão mística, ao passo que o conhecimento de que somos filhos de Deus nos dá a força para seguir as pegadas do Salvador, de Belém ao Calvário. O que finalmente reorganizará nossa vida humana será a presença, no mundo, daqueles que conhecem o Cristo como seu exemplo e reconhecem que possuem a mesma vida divina, assim como a afirmação da lei básica do reino de Deus, a Lei do Amor, salvará finalmente o mundo. É a substituição da vida do mundo, da carne e do diabo pela vida do Cristo, que injetará um significado e um valor à vida.

Um sentimento de fracasso do amor constituiu o principal problema na agonia do Jardim; foi este senso de árduo trabalho com as forças do mundo que capacitou o Cristo a unir-se em companhia de todos os Seus irmãos. Os homens fracassaram, com ele, da mesma forma como fracassam conosco. No momento em que Ele mais necessitava de compreensão e de toda a força que o companheirismo proporciona, Seus mais chegados e queridos, ou desertaram, ou dormiram, alheios à Sua agonia mental. "O conflito de Prometeu é a luta que tem lugar na mente humana entre o anelo pela compreensão e o impulso imediatamente mais próximo daquelas afeições e desejos vivos que são condicionados pela boa vontade e o apoio dos semelhantes; os desejos de felicidade dos que amamos; de alívio da dor e do desapontamento nas mentes que não podem compreender o sonho interior; e de calorosa reafirmação das honrarias mundanas. Este conflito é a rocha contra a qual a mente religiosa se afunda e se rompe contra si mesma." (4) Sobre esta rocha o Cristo não afunda, mas Ele teve Seus momentos de mais intensa agonia, somente encontrando alívio na compreensão da Paternidade de Deus e seu corolário, a fraternidade do homem. "Pai", Ele disse. Foi este senso de unidade com Deus e Seus semelhantes humanos que O conduziu a instituir a Última Ceia, a originar aquele serviço da comunhão, cujo simbolismo foi tão desastradamente perdido na prática teológica. A nota-chave daquele serviço da comunhão foi o companheirismo. "Somente assim é que Jesus cria o companheirismo entre nós. Não é como um símbolo que ele assim faz... na medida em que nós, reciprocamente, e com ele, formos uma só vontade, para colocar o Reino de Deus sobre tudo e para servir em favor desta fé e esperança, na medida em que houver companheirismo entre ele e nós e os homens de todas as gerações que viveram e vivem no mesmo pensamento”. (5) - (O Reaparecimento do Cristo)

1 - S. João, X,10.
2 - O Buda e o Cristo, por B. H. Streeter, pág. 215.
3 - Some Mystical Adventures, por G.R.S. Mead, pág. 161
4 - Psychologv and lhe Promethean Will, por W. H. Sheldon, págs. 85, 86.
5 - The Mystery of lhe Kingdom of God, por Albert Schweitzer, pág. 56.

Início